UIVOS

Anotações itinerantes

Gabriel Schincariol Cavalcante
impublicável.
Published in
2 min readDec 19, 2023

--

Eu estava sentado na poltrona do barbeiro e o barbeiro estava com a máquina três ligada, passando a lâmina pela minha cabeça. Três e um, zero na nuca é o corte que eu repito sempre que vou até lá. A praticidade me seduz. Eu me via no reflexo do espelho e reparava no meu rosto: que coisa esquisita ter um rosto. Ter um nariz. Ter uma boca. Ter pêlos no rosto. Ter dois olhos. Ter dentes, dezenas de dentes. Que coisa esquisita ter um rosto para chamar de meu, ter um rosto que algumas pessoas vêem e dizem: é ele. Ter um rosto que algumas pessoas sentem alegria ao ver e ter um rosto que algumas pessoas sentem raiva ao ver e ter um rosto que a maioria das pessoas não viu, não verá e se vir, esquecerá logo em seguida na multidão de tantos rostos que compõe este mundo multifacetado. Esse rosto me entristecia na adolescência, as espinhas que não paravam de nascer. Seis meses de Roacutan e esse é um problema a menos. É um rosto esquisito: meus olhos não são grandes, meu nariz é, minha boca também. É um rosto esquisito que enfrenta o mundo. Antes me entristecia, hoje não me entristece. Enquanto corto o cabelo eu consigo apreciar a esquisitice que é ter o rosto que eu tenho. O cabelo cai sobre o avental. O som da máquina vibra no meu ouvido.

A vibração é interrompida: um uivo. Um uivo gutural, longo. O barbeiro paralisa a maquininha, que para de virar. Vejo pelo espelho que ele volta os olhos para a porta de vidro. Eu também viro os meus olhos para a porta de vidro. Pelo vidro nós dois vemos a mesma coisa:

Quem uiva é um homem.

Um homem de costas. O homem que uiva abaixa as calças e deixa a bunda nua a mostra. A rua está cheia e muita gente olha para o homem sem calças que uiva.

O homem para de uivar e com as calças abaixada, ele se põe de cócoras. Muita gente olha para o homem de cócoras.

De cócoras, o homem começa a cagar no chão. No meio do passeio. As pessoas param de olhar.

O barbeiro diz: ah, não. Eu paro de olhar.

O barbeiro diz: ele tá cagando, irmão. O barbeiro do lado para a maquininha e olha para a cena:

Puta que pariu.

O homem uiva outra vez. Ele se levanta, ergue as calças e vai embora caminhando.

A maquininha volta a cortar o meu cabelo. Três e um, zero na nuca.

O corte fica bom, como sempre. Agradeço o barbeiro, desejo boas festas, ele me deseja boas festas também.

No meio do passeio tem bosta humana, de um homem que uiva.

Ninguém está surpreso. Eu não estou.

--

--