ROLETA-RUSSA

Gabriel Schincariol Cavalcante
5 min readJan 13, 2019

27–12–18, araras

Esta é uma história de amor.

A porta abriu às duas da manhã e ele sabe as horas porque pouco antes olhou para o relógio que fica em cima do criado mudo, ao lado da sua cama, e viu os ponteiros com aquela luminosidade esverdeada apontarem duas horas. Pouco depois das duas da manhã a porta abriu, então. Quando a porta de entrada abre uma corrente de ar corre pela casa e é uma torrente de pressão em todas as outras portas e janelas, fazendo um pequeno tremor. Às vezes parece que a casa é à vácuo. Às vezes é. Todo o ar é sugado e respirar é impossível. Estava quase impossível quando ele olhou o relógio e agora que a porta de entrada abriu ele voltou a inspirar e expirar, porém com o coração acelerado. Da agonia da espera para o desespero. Não bem desespero, outra palavra. Ansioso. Uma nova agonia, uma agonia transformada. Da espera longa e contínua para a espera da iminência, o pé na beirada do precipício, o envelope nas mãos pronto para ser rasgado, o resultado finalmente próximo de ser revelado. Seu coração batia rápido.

Ouviu os passos, não estavam pesados, tinham rítmo contínuo, caminhar normal. Criou esperança. Mordeu os beiços. Ficou de olhos bem abertos, não sabe o motivo. Não via nada, só os ponteiros com a luminosidade verdade, e mesmo assim tinha que manter os olhos bem abertos, sabia disso, era preciso ter os olhos abertos para escutar com perfeição tudo o que estava prestes a acontecer do lado de lá. Do lado de lá da porta do quarto dele. Os olhos abertos para compreender. São os sentidos da infância na sua confusão de insuportável clareza. Até o piscar era mais rápido que o normal, não podia perder nenhum detalhe. Ouviu os passos e respirou fundo. Ia bem, ia bem.

A porta do armário que rangia foi aberta e seguido do ranger veio o som de algo caindo, debatendo, e espatifando no chão. Coração disparado mais uma vez. Escutou também a cama no quarto ao lado ranger, a dele não rangia, era nova, box, a dos pais tinha um estrado antigo e uns pés de ferro que denunciavam cada movimento. Era a mãe. Estaria acordada? Ele torcia para que sim. Torcia para que sim para que a espera não fosse solitária, ainda que separados por uma parede e pelo silêncio, se ela estivesse acordada ele saberia que não estava sozinho. É um conforto. Junto com o que espatifou no chão ouviu um resmungo, Ê, caralho, e o vidro ia tilintando enquanto o pé provavelmente chutava os cacos para perto um do outro. Conseguiu ouvir a vassoura tocando o chão, ssssshp, sssshp, e o vidro correndo para cima do plástico da pázinha. Do desespero total para um estranho reconforto, estava limpando, a consciência presente. Sim, sim, tudo estava bem, foi só um acidente.

A pressão da porta da geladeira sendo aberta também tinha seu som característico. Duas da manhã, pouco depois, ali onde moravam não havia movimento nas ruas, era um carro ou outro que passava com o farol iluminando as janelas, esporádicos. Tudo era escutável, perceptível, até o não-dito. O segredo era manter os olhos bem abertos, ele sabia, por isso encarava a escuridão escrutinando por cada onda sonora emitida. A água caindo no copo. A tampinha sendo rosqueada de volta na garrafa. A porta da geladeira fechando de novo. A água descendo pela garganta. Gulump. Gulump. O copo de vidro sendo colocado em cima do tampo de granito da pia. Um pequeno arroto. Não, não era nada, só tomou água rápido demais. Será? Ou será? Não, não sei. Piscou firme, mantendo os olhos fechados por dois segundos. Limpar a visão para escutar melhor. A torneira da pia foi aberta, depois fechada. A pequena luz que entrava por baixo da porta vinda da cozinha sumiu e os passos voltaram, aproximando-se, aprochegando-se, vindo, ritmados como as batidas do peito do menino.

Do banheiro, então, não se perdia um movimento, era de frente para a porta do quarto dele. A porta do banheiro se abriu, os passos entraram e a porta não se fechou atrás. Som perfeito. O assento da privada levantado e tocando a tampa, o plástico se chocando. E então o arco da urina atingindo a água da privada de uma pequena altura, com seu som particular de uma cachoeira doméstica. Um, dois, três, quatro. Quatorze segundos. Quatorze segundos era tempo em excesso, ele calculava quando fazia xixi, não dava seis, no máximo. Mas ele era menino, criança faz menos xixi, a bexiga menor. É isso, pensou. Ou. Ou o excesso de trabalho do fígado, o excesso de líquido no corpo, a necessidade de urinar para o corpo se purificar. Havia visto na internet que isso acontecia. Não, poderia ser a água que tinha tomado na cozinha. Só isso, nada mais. Ou será quê? Colocou-se em uma disputa com as próprias ideias, argumentando e contra argumentando no silêncio do próprio pensamento e sendo sem dúvida parcial pela conclusão que desejava, em desespero, em pânico, chegar. Mas não chegava. Não era bobo. Era menino, criança. Não é bobo, por isso tem os olhos abertos.

Engraçado como ideias tem seu próprio som. Nesse duelo interno deixou de ouvir o que acontecia lá fora, mesmo que seus pensamentos não fizessem barulho algum eles, de alguma forma, calavam tudo. Por isso não ouviu quando a descarga mandou a urina e a água da privada embora pelo encanamento, nem quando a torneira foi aberta, fechada, a água com pasta de dente cuspida, a boca lavada e a luz se desligou. Por isso foi pego de surpresa, sobressalto, quase pulou da cama quando a porta do próprio quarto abriu. Fechou os olhos. Conseguiu reagir no tempo absoluto. Fechou os olhos e fingiu dormir, temeu que tremesse de tão rápido que o peito batia. Ouviu os passos abafados vindo em sua direção. A presença se inclinando sobre ele, escondido sob o cobertor vermelho e azul do Senninha, e em seguida o rosto áspero de barba feita tocando sua bochecha. Respirou fundo. Bem fundo. Sentiu os lábios secos do pai.

Inspirou o máximo que pôde.

Inspirou tudo.

Todo o ar que há nesse mundo.

E não sentiu o cheiro da bebida.

Quando a porta do seu quarto se fechou atrás do pai que saía, o menino sorria de olhos fechados. Por aquela noite havia evitado o mal que ele em circunstância alguma poderia controlar além da própria ilusão.

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