Que os mortos possam morrer
Para que os vivos possam viver
Deixe-os virar a fotografia na mesa. Deixe-os virar o nome na conta conjunta. Deixe-os partir na água.
— Joan Didion, O Ano do Pensamento Mágico
São essas as três fases que Didion escreve na parte final de O Ano do Pensamento Mágico, escrito logo depois da morte do marido da autora, o também escritor John Gregory Dunne, em 30/12/2003. Durante um ano — o ano do pensamento mágico — , Didion diz ter recorrido a forma de pensamento das crianças, a noção de que, por meio do pensamento mágico, seria possível reverter a narrativa, alterar o resultado, enfim: ressucitar o marido, que voltaria a qualquer momento.
Por meio da linguagem, O Ano do Pensamento Mágico representa o processo de elaboração e trabalho em face das resistências apresentadas pelo luto; do pensamento mágico infantil, a autora enfim alcança o sentimento libertador de deixar que os mortos possam realmente morrer — só assim ela pode continuar vivendo.
Poderíamos dizer que a construção narrativa de O Ano do Pensamento Mágico tem parcial correspondência mimética com a semiologia do luto freudiana, que vai de um desânimo profundamente doloroso até a produção de um afeto normal que começa com a dor da perda e termina com a sensação agradável de libertação do eu (mais sobre isso em Lutos Finitos e Infinitos, de Christian Dunker).
No entanto, quando esse processo de elaboração essencialmente discursivo é fraturado, rompido, reconhecido como insuficiente, nós encaramos um buraco, uma ausência em nossa esfera psíquica por meio da qual a libido permanece constantemente ligada ao que já não está mais aqui — uma ausência insuperável:
Nos termos freudianos, tanto o luto quanto a melancolia têm a ver com a perda. Mas, enquanto o luto é o lento e doloroso desligamento entre a libido e o objeto perdido, na melancolia a libido permanece ligada ao que desapareceu.
— Mark Fisher, Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos
Retomo esses pontos porque, mais uma vez, algo na internet me deixou triste. Muita coisa na internet tem me deixado triste — a verdade é que boa parte do que escrevo tem partido dessa desilusão. O largo da batata Ruffles me deixou triste, a influencer que reformou o apartamento alugado me deixou triste, o close friends da Billie Eilish me deixou triste.
Agora foi a vez do terrível vídeo feito por inteligência artificial, em que celebridades que já morreram — Ayrton Senna, Marilia Mendonça, Pelé — aparecem como se estivessem vivos, em curta sequência que me causou uma terrível sensação febril de insanidade.
O vídeo é, como quase tudo que é feito por inteligência artificial, desagradável de se olhar; os dedos dos humanoides criados por linhas de programação são esquisitos, disformes; os movimentos são incômodos. Ainda assim, muita gente ficou impressionada com o resultado. Muita gente ficou feliz. Muita gente ficou emocionada.
Muita gente sentiu como se os ídolos estivessem aqui outra vez.
Mas eles não estão. Mas eles não podem estar.
E a nossa contínua negação da possibilidade de morrer nos coloca em um ciclo melancólico constante.
Quando vi os primeiros segundos do vídeo, além da sensação febril, as palavras de Didion, com as quais lidei diariamente durante os últimos três anos enquanto escrevia a minha dissertação sobre O Ano do Pensamento Mágico, sobre escrita e sobre luto, logo se pronunciaram para mim.
Deixe-os partir. Deixe-os virar virar o nome na conta conjunta. Deixe-os partir na água.
Deixe com que os mortos possam, enfim, morrer.
Sem que os mortos tenham o direito de morrer, como poderemos exercer o nosso direito de continuar vivendo? Como nossa libido conseguirá se desprender daquilo que não mais existe, do objeto perdido, se em seu lugar inserimos um simulacro, uma substituição, um clone imperfeito, defeituoso, imortal, inumano?
Recentemente, escrevi sobre como é importante reinserirmos o nome da Morte no debate público como parte da vida, como parte indissociável de quem nós somos, pois, do contrário, estaremos sempre sob o constante temor da inevitável finitude, suportando um peso intolerável daquilo que nos é dado a partir do momento em que nascemos.
Diga o nome da Morte em voz alta
Estou convencido de que os contextos social e ideológico que tornam possíveis a criação de um vídeo com celebridades mortas ressucitadas por inteligência artificial — e todo o fascínio que cerca a noção de inteligência artificial — estão diretamente ligados a nossa rejeição da morte, da possibilidade de morrer. Estão diretamente ligados a nossa condição melancólica de rejeição da fragilidade, da tristeza, da dor.
O aspecto comum do impressionismo gerado pela inteligência artificial decorre do quanto estes modelos de linguagem — LLM são capazes de, em aparência, replicar a ação humana. É esse o ponto de partida de quase toda conversa entre duas pessoas médias: você viu o que o Chat GPT pode fazer? Ele escreve um ensaio sozinho! Ele faz um vídeo sozinho! Ele faz uma obra de arte sozinho!
De milhões de linhas de código de programação e bilhões em dinheiro gasto para manter a operação computacional necessária para processamento destes modelos, obtemos a resposta, construída a partir do trabalho de dezenas de milhões de anônimos cujas obras e produções foram violadas para que o modelo aprendesse, para o nosso Grande Anseio: o resultado coisificado não apenas alienado do trabalho humano, mas dele ilusoriamente independente.
Claro, há trabalho humano por trás: a inteligência artificial não cria nada. Mas este trabalho está tão soterrado, tão escondido, que concedemos à máquina, ao programa, ao LLM o poder da autoria, da criação. Nós não apenas alienamos o trabalho do Outro; nós alienamos a nós mesmos, pela promessa de permanência e ágil recompensa mediante um prompt.
Por que entregaríamos ao modelo de linguagem o direito de falar em nossos nomes? Por que rejeitaríamos o processo laboral diante da linguagem, por meio do qual conhecemos nossas ideias, nossas limitações e nossos potenciais, para que o Chat GPT escreva em nosso lugar? Por que pediríamos a um modelo de inteligência artificial que criasse aquilo que a nós incumbe criar?
Porque tememos a morte, porque negamos a morte, porque rejeitamos a possibilidade de morrer — a nossa, a dos outros. Porque recusamos a finitude, porque recusamos o fracasso, porque recusamos a dor. Assim, abraçamos o revolucionário pastiche da inteligência artificial: um sem-fim de combinações de tudo o que foi feito, apresentado de um jeito que não podemos chamar de nosso, não podemos dizer que é dos outros. Não é de ninguém, não é humano. Se não é humano, não pode morrer.
No lugar de deixarmos os mortos partirem, nós nos apegamos a ilusão de suas presenças: vítimas de um raciocínio infantilizado, acreditamos que somos capazes de mudar o resultado, de vencer a morte não pelo poder do pensamento e da linguagem, mas pelo poder da inteligência artificial, que nos substitui. Da existência que sentimos falta, criamos uma inexistência alegórica vazia: frames febris, fantasmagóricos, reproduzindo a imagem de quem amamos, cuja ausência ainda não somos capazes de nomear.
Incapazes de aceitar a mortalidade, não recriamos a vida. Coisificamos a vida em um pequeno conteúdo, que pode ser curtido, compartilhado, comentado, nunca vivido. Renunciamos a mortalidade (que, não podendo ser controlada, é negada) para tentarmos obter, adquirir a vida como se fosse capital, como se fosse propriedade. Mais se tem, menos se é:
Quanto menos comeres, beberes, comprares livros, fores ao teatro, ao baile, ao restaurante, pensares, amares, teorizares, cantares, pintares, esgrimires etc., tanto mais tu poupas, tanto maior se tornará o teu tesouro, que nem as traças nem o roubo corroem, teu capital. Quanto menos tu fores, quanto menos externares a tua vida, tanto mais tens, tanto maior é a tua vida exteriorizada, tanto mais acumulas da tua essência estranhada.
— Karl Marx, manuscritos econômicos-filosóficos
Transformada a vida em capital, ela pode ser protegida de tudo — inclusive do seu fim. Assim, é melhor que não digamos, mesmo, o nome da Morte em voz alta, pois o tempo pode nos vencer.
No entanto, estamos fadados a, em vida, deixarmos de viver. Melancólicos ambulantes, estaremos sempre presos neste objeto perdido de antemão: uma morte que não se conclui, uma morte que se faz presente na sua negação. No lugar de, como escreve Derrida em Espectros de Marx, conjurarmos a morte para que o morto não retorne, nós não deixamos que o morto jamais parta. Mas sem partir, continua morto. Sem partir, continua ausente. Sem partir, continua vazio.
E nós nos fazemos reféns voluntários dessa insuportável presença inatingível, inexperimentável.
Não escrevo isso por não entender o impulso. Entendo como poucas outras coisas. É o meu próprio impulso: o que eu não faria para ter, de novo, a presença da minha mãe? O que eu não faria para reverter a sua morte? Para ter mais uma conversa?
Eu faria de tudo, se fosse possível. Mas não é. E ao insistir em fazer aquilo que é impossível, eu estou preparando a minha própria derrocada. Além da terrível dor da perda, experimentaria a dor da incapacidade da ressucitação, da impossibilidade do retorno. Experimentaria a surrealidade de ver a representação vazia da imagem da minha mãe (como se eu precisasse! como se eu não lembrasse de quem ela é todos os dias!) sem nada da presença que tanto amei.
Nosso caráter humano está na resistência ao impulso. A morte é uma natureza inevitável. Sua negação é, por outro lado, uma artificialidade monstruosa. Ao cedermos espaço à ilusão da infinitude, estamos, de novo, cedendo ao artifício de negarmos a nós mesmos, ao nosso direito de continuar vivendo enquanto negamos o direito dos mortos em permanecerem mortos. Quando enterramos nossos mortos, seja no ritual fúnebre, seja em outros níveis imaginários e simbólicos, tomamos parte no processo natural de nossos lutos. Quando escondemos nossos mortos de nós mesmos, afundamos no abismo da melancolia.
Deixemos os mortos partirem na água. Permitamos a nós a possibilidade de continuar vivendo.
Publicado originalmente na newsletter Eu posso estar errado