PORRE

Gabriel Schincariol Cavalcante
impublicável.
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12 min readDec 31, 2023

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O mais velho entre nós tinha 17 anos recém-feitos. Mas não foi ele quem entrou na adega para comprar bebida, e sim um que tinha 16 anos, porém com barba na cara, o que, para nós, parecia indicativo de maioridade o suficiente para enganar o caixa da adega.

Duas vodkas, uma catuaba, um suco de laranja e um saco de copos descartáveis. O caixa da adega passou os códigos de barra, recebeu o dinheiro, devolveu o troco e ignorou o amontoado de adolescentes do lado de fora.

Em retrospectiva, qualquer um de nós conseguiria comprar as bebidas.

Éramos em seis ou sete, já não tenho certeza.

Vejamos: eu, o José, que tinha 16 anos e barba na cara, o Rick, que tinha 17 e não tinha barba na cara, a Sara, o Rodolfo, a Bianca.

Seis.

Pode ser que houvesse mais um, mas eu não me lembro.

Dos seis que com certeza estavam lá, três estudavam na mesma escola: eu, José e a Sara. O Rick era amigo do Rodolfo, que namorava a Sara, que era amiga da Bianca, que não namorava o José, mas com quem o José gostaria de namorar. Rick, Bianca e Rodolfo também estudavam na mesma escola, diferente daquela em que eu estudava.

Duas escolas, um grupo só. As duas escolas ficavam na mesma cidade, que não era a cidade em que morávamos.

Duas escolas, um grupo só, o mesmo ônibus levando os alunos toda a manhã.

Essa era a configuração social daquele grupo.

Pode ser que fossemos em sete, mas eu realmente não me lembro da sétima pessoa.

Desse grupo, eu era a adição mais recente. O meu único ponto de contato era estudar na mesma escola que o José e a Sara, enquanto os demais se conectavam entre si de outras maneiras. José e Sara estavam no segundo ano do ensino médio, eu estava no primeiro. Estávamos reunidos porque no dia seguinte seria o aniversário de 17 anos do José e ele comemoraria em família, mas quis beber com os amigos antes.

A minha entrada no grupo aconteceu por causa da Sara, com quem eu fiz amizade no primeiro dia de aula. Ela me apresentou a escola, me apresentou o José e me apresentou os outros três, da outra escola e do mesmo ônibus. Como o garoto novo, eu apenas segui o fluxo: ela era gentil e animada e educada e parecia não se incomodar com a minha presença, o que já era significativo para mim.

Ela era gentil e animada e educada e parecia não se incomodar com a minha presença e eu queria muito, mas muito mesmo, desde o primeiro dia de aula, beijar a sua boca.

Isso foi antes de ela namorar o Rodolfo.

O que pode dar a entender que depois de eles começarem a namorar a minha vontade de beijar a sua boca tenha sumido. Essa seria uma conclusão equivocada.

Agora estávamos chegando no fim do ano, eu estava integrado ao grupo de amizade, mas ainda era a adição mais recente. Sara namorava o Rodolfo e eu nunca beijei a sua boca. José queria beijar a Bianca. E eu não sabia ainda quem o Rick queria beijar.

Essa era a etnografia daquele grupo.

E aquele grupo estava na praça da cidade, em frente a igreja, reunido para comemorar o aniversário de 17 anos do José com vodka, catuaba, suco de laranja e copos descartáveis.

Essa era a localização e a intenção daquele grupo.

Agora, a ação.

Começamos pela catuaba: os seis copos cheios, um, dois, três, e viramos.

Sendo a nova adição ao grupo, eu precisava provar o meu valor e o meu valor seria provado pela minha capacidade de ingestão etílica. Fui o primeiro a terminar o copo de catuaba e a vontade de vomitar foi imediata.

José terminou em segundo. Rodolfo em terceiro. Sara em quarto. Rick em quinto. E a Bianca cuspiu metade do copo no chão.

O sabor era horroroso e pensei que deveríamos ter comprado água, mas não disse nada, porque não queria ser o cara que sugeria comprar água.

Segundo copo de cada um, menos da Bianca, que encheu o seu copo de suco de laranja.

Um, dois, três.

Eu em primeiro. Rodolfo em segundo. Sara em terceiro. José em quarto. Rick não conseguiu terminar de uma só vez.

Eram quase dez horas da noite e comecei a sentir meu rosto formigar.

Depois do segundo copo, nós diminuímos o ritmo. Misturamos o suco de laranja com vodka e tomamos devagar. Meu rosto inteiro pinicava. A Sara se apoiava no Rodolfo, que ria, e o José perguntava toda hora para a Bianca se ela estava bem.

Ela dizia que estava bem.

Eu estava sentado ao lado do Rick. Ele puxou uma barra de diamante negro do bolso, abriu e comeu. Fiquei olhando a cena.

Se eu bebo assim e não como doce, fico hipoglicêmico, ele me disse. Ah, respondi. Não é melhor beber menos, então?, perguntei. Ele riu. Melhor comer doce. Eu ri.

Eu estou fazendo técnico em enfermagem, ele disse. Ah, respondi. Você vai querer fazer técnico? Ainda não sei, mas acho que não. Por quê? Ah, eu disse, e fiquei em silêncio pensando. Tomei um gole da vodka com suco de laranja. Não sei se quero ficar o dia inteiro na escola, sei lá. Não é tão ruim, ele disse. Sei lá, talvez eu preste para alguma coisa. Você gosta do curso?, perguntei. Gosto, ele respondeu.

Ficamos quietos, ouvindo a conversa do José com o Rodolfo, sobre o que eu não me lembro mais.

Inibição da liberação hepática da glicose, o Rick falou de repente.

O quê?, perguntei

Inibição da liberação hepática da glicose, por isso quando eu bebo eu fico hipoglicêmico. Perguntei para uma professora no técnico.

Ah, respondi.

Legal, né?

Acho que sim.

Um, dois, três, e viramos uma dose de vodka pura. Eu, José e o Rodolfo. Os outros pararam de virar. Sentia minha boca dormente e minha cabeça pesada.

Precisamos comprar uma vela, eu disse. Uma vela pro Zé.

Todos riram.

Não, é sério, precisamos comprar uma vela pro Zé. São quase meia-noite. Olhei para o relógio e não consegui enxergar direito os ponteiros. Mostrei o relógio para eles: não são quase meia-noite?

Sim, a Sara respondeu.

Viu? Vamos comprar uma vela pro Zé.

Não precisa de vela, o José disse.

Precisa, sim, disse o Rodolfo.

Eu preciso de mais um chocolate, disse o Rick.

Não tinha nenhum lugar aberto para comprar uma vela de aniversário. Voltamos na adega, aberta 24 horas. Já anestesiados pelo álcool, ficamos menos preocupados com o caixa, que, anestesiado pelo trabalho, não estava nada preocupado com a gente. O José ficou do lado de fora, porque não queria velas. Perguntei se tinha vela de aniversário, o caixa disse que não. E vela normal? Vela normal tem. Quero 17, então. 17 pacotes de vela? Não, 17 velas. O pacote tem oito. Então quero… dois pacotes. Dois são 16. Três pacotes. Ok.

E meu chocolate, disse o Rick.

E um chocolate, eu disse para o caixa, apontando para o suflair.

E um isqueiro, disse o Rodolfo.

E um isqueiro, eu disse para o caixa.

A garrafa de catuaba já tinha acabado. Colamos as velas sobre o banco da praça, acendemos as 17 e cantamos parabéns para o José. Meia-noite e um.

O resto das velas foi para o lixo.

A Sara e o Rodolfo se sentaram a começaram a se beijar. O José se sentou ao lado da Bianca, que apoiava a cabeça nas mãos e reclamava de tontura. Eu fiquei emburrado, com ciúmes da Sara e do Rodolfo, e virei um copo de vodka com suco de laranja.

Quer um pedaço?, o Rick me perguntou, estendendo o suflair.

Não quero.

Você tá bem?

Tô bem. Respondi com os olhos ardendo e fixados na Sara e no Rodolfo.

É melhor você deixar isso pra lá, disse o Rick.

Não consigo deixar pra lá.

Você sabe que eles tão juntos.

Eu sei que estão e não consigo deixar pra lá.

Ela é sua amiga.

Ela era amiga do Rodolfo também.

E agora é namorada.

E pode ser ex.

Deixa isso pra lá.

Não quero deixar pra lá.

Mas deveria.

Come seu chocolate e não me enche o saco.

Agora eu me lembro. Éramos em seis, mas viramos sete. Um outro amigo do José, que não estudava em nenhuma das duas escolas, chegou mais tarde, já de madrugada. O seu nome era Rafael. Eu era o único que ainda não o conhecia.

Ele me abraçou e me deu um beijo no rosto. Pediu um copo, encheu de vodka e virou.

Que coisa horrível, resmungou sorridente.

A praça inteira girava e as luzes dos poucos carros que passavam pela rua me cegavam e me deixavam enjoado.

A segunda garrafa de vodka secou. Rafael disse que compraria mais uma, já que ele não tinha pago as outras bebidas.

E um chocolate pra mim, disse o Rick.

E um chocolate pra você, bebê, respondeu o Rafael.

Os dois riram.

Quando ele voltou com a vodka e o chocolate, eu me levantei do banco e perdi o equilíbrio. Tive que me apoiar na Sara e no Rodolfo para não cair. A Sara segurou o meu braço e sorriu. Fiquei constrangido, puxei o braço e me sentei outra vez.

É melhor você parar, disse o Rodolfo.

É melhor você ir tomar no cu, eu respondi.

Todos me encararam.

Meu rosto queimava com o álcool e com todo mundo me olhando. O Rodolfo se levantou, o Rick também. Ele tá muito bêbado, disse. Balancei a mão no ar: tô muito bêbado, foi mal.

Que clima gostoso, disse o Rafael. Vamos brindar!

Todos riram. Eu ri. Tinha feito papel de palhaço e agora me restava aceitar. Estiquei meu copo para o Rafael encher.

Pra você, não.

Pra mim, sim.

Você já bebeu demais.

Mas não o suficiente.

O suficiente pra quê?

Pra… Pra… inibir o hepatismo dos liberadores de glicose.

Quê?

O Rick segurou meu braço, dando risada. Inibir a liberação hepática da glicose.

Isso, isso.

Do que vocês tão falando?, perguntou o Rafael.

Com o copo erguido, respondi no tom mais solene que consegui: hipoglicemia, meu caro, hipoglicemia.

A Sara cochilava no ombro do Rodolfo. A Bianca ouvia o José falar, sem prestar muita atenção. Eu balançava para frente e para trás para não cair.

Nós já voltamos, disse o Rafael, segurando a mão do Rick.

Vão onde?, perguntei.

Pra longe dos olhos de Deus, ele respondeu, apontando com a cabeça para a igreja.

Preciso mijar, disse o José. Ele foi pro outro lado da rua, atrás de uma árvore. Eu me sentei ao lado da Bianca e apoiei a cabeça nas mãos.

Você tá bem?

Tô bem, respondi.

Você não bebeu demais?

Não o suficiente.

Eu acho que tô muito bêbada.

Olhei para ela. Faz o quatro.

Ela levantou a mão com quatro dedos erguidos.

Eu dei risada e segurei a sua mão levantada. Ela sorriu. Não tá bêbada, disse, eu vi num filme.

Continuei segurando a sua mão. Meu rosto ardia, eu me sentia como se estivesse com febre. Ela não tirou a mão da minha.

Vou com a Bianca até a casa dela e já volto, eu disse. O José nos encarava em silêncio. O Rodolfo parecia irritado. A Sara não parecia enciumada, o que me incomodou. O Rick estava abraçado com o Rafael.

Fomos caminhando de mãos dadas e em silêncio. Eu pensava em milhares de coisas e em coisa alguma, tudo ao mesmo tempo. Nenhuma palavra tinha tempo o suficiente para se formar e já era substituída pela próxima na fila das sinapses.

Ela interrompeu o silêncio: por que nunca conversamos antes?

Parei de andar. A gente já conversou antes.

Nunca conversamos antes.

Claro que conversamos, no ônibus.

Oi e tchau não é conversar.

Tecnicamente…

É sério.

Sei lá, não sei porque nunca conversamos antes.

Achei que você não gostasse de mim.

Por que eu não gostaria de você?

Porque nunca falou comigo direito.

Você também nunca falou comigo direito, então, só oi e tchau.

É diferente.

Como?

Não sei, mas é diferente.

Voltamos a andar em silêncio. Nossas mãos ainda estavam entrelaçadas.

É aqui, ela disse, parando em frente a um portão.

Olhei para o seu rosto. Era um rosto bonito, eu acho. Tudo estava no lugar. Nunca tinha me chamado atenção. Eu nunca tinha reparado. Mas, sim, era um rosto bonito. Os olhos eram pequenos, quase infantis, a franja cobria parte da testa. Ela não ria muito e quando ria era agradável de ver.

Faz o quatro, eu disse, só para garantir que você não está bêbada.

Ela levantou a mão que eu não estava segurando e sorriu.

Continua sem estar bêbada, eu disse. Segurei a outra mão levantada e, com as duas mãos dadas, eu me aproximei e nos beijamos.

O gosto não era dos melhores.

Depois de nos beijarmos, falei a primeira coisa que me veio na cabeça: e o Zé?

Ela pareceu surpresa e soltou as minhas mãos. Por que você tá falando dele?

Sei lá, achei que tinha alguma coisa entre vocês.

Não tem nada entre a gente.

Ah.

Somos só amigos.

Ah.

Vou entrar.

Tá bom.

Um segundo de hesitação, dei um beijinho na sua boca, ela não reagiu. Boa noite. Abriu o portão e entrou sem se virar para mim.

Olha o nosso cavalheiro aí, disse o Rafael quando voltei. Fiz uma reverência, peguei um copo, enchi de vodka e virei.

A escuridão tomou meus olhos e tateei com as mãos para encontrar o banco antes de cair sentado.

Acho que já deu por hoje, disse o Rafael pegando o copo da minha mão. Não consegui resistir.

Deixei meu corpo pender para o lado e fechei os olhos.

Toma, disse o Rodolfo, segurando uma garrafinha de água perto do meu rosto.

Bebi um gole e apaguei outra vez.

Eu ouvia as vozes conversando, mas não conseguia falar nada, nem abrir os olhos. Sentia o oxigênio entrar e sair do meu corpo, o ar quente encher os meus pulmões. Sentia o sangue correr nas minhas veias, sentia meus olhos vibrando, sentia meu pescoço palpitando.

Ele não vai conseguir ir embora sozinho, Zé, ouvi a Sara dizer.

Abraça meu pescoço, o Rodolfo disse, me erguendo do banco. Minhas pernas não tinham forças para me manter de pé. Bebi mais um gole de água.

Vamos te levar em casa, o Rodolfo disse.

A Sara estava na minha frente. Não precisa, respondi. Claro que precisa, a Sara disse.

Claro que precisa, repeti.

Vamos logo, ouvi o José dizer, mas ele não estava no meu campo de visão.

Quando chegamos em frente a minha casa, eu disse para empurrarem o portão para ver se estava aberto. Estava aberto. Você consegue entrar sozinho?, perguntou o Rodolfo.

Consigo, consigo, balbuciei.

O José soltou o meu braço e eu quase caí.

Calma, Zé, disse a Sara.

Ele já estava indo embora pela calçada. Vi a sua silhueta se afastando.

Feliz aniversário, tentei gritar, mas foi mais um grunhido.

Ele parou de andar.

Para com isso, cara, disse o Rick.

O José voltou a andar na mesma direção para onde já estava indo.

Vai dormir, disse o Rodolfo.

Fiz uma continência jocosa. Sim, capitão.

Que figura, disse o Rafael, sorrindo.

Olhei para a Sara. Ela parecia preocupada. Fiquei pateticamente satisfeito com a sua preocupação.

Leva a garrafa de água, disse o Rick, e bebe antes de dormir.

Entrei em casa e eles fecharam o portão para mim.

Tira essa roupa antes de deitar na cama, minha mãe disse. Amanhã a gente conversa.

Tirei a roupa, sentei na cama, matei a garrafa de água em um só gole e deixei meu corpo cair.

O mais velho de nós tinha 17 anos recém-feitos, o que quer dizer que, agora, ele tem 32.

Voltei para cá para ver a minha mãe. A praça parece a mesma, a adega não existe mais, deu lugar a uma loja de 1,99. Pela manhã fui tomar café e achei ter reconhecido o rosto de uma mulher que vinha caminhando na direção contrária. Os olhos pequenos, agora sem franja. Ela me viu, mas não me cumprimentou, uma decisão deliberada de não me cumprimentar, o que é diferente de não me reconhecer. Procurei nas redes sociais e confirmei que ela era quem eu pensei que ela era. O perfil er fechado e não tive coragem de pedir para seguir.

Pelas redes sociais, descobri que há quatro anos o Rodolfo e a Sara se casaram. Eu não fui convidado.

O Rick e o Rafael namoraram e terminaram um tempo depois. Foi pelo perfil do Rick que descobri sobre o casamento do Rodolfo e da Sara. Ele terminou o técnico em enfermagem e agora está na residência de endocrinologia.

O Rafael me segue e eu o sigo de volta e nós nunca conversamos, mas ele curte o que eu publico.

Há dois anos, o José morreu. Não sei a causa. O Rick postou uma foto deles dois, da época da escola. Cacei nos meus arquivos, mas descobri que não tínhamos nenhuma foto juntos — nem com o José, nem com o Rick, nem com a Sara, nem com o Rodolfo, nem com a Bianca, nem com o Rafael.

Mandei uma mensagem na época perguntando para o Rick o que tinha acontecido com o José. Antes de ele ler, apaguei.

Você me mandou alguma coisa?, ele escreveu mais tarde. Mandei sem querer, respondi. Ah, entendi. Como você está? Vamos marcar um café.

Vamos sim, quando eu estiver por aí te mando mensagem, eu respondi.

Mas nunca mandei, é claro.

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