POESIA EM EURO

Gabriel Schincariol Cavalcante
impublicável.
Published in
5 min readMar 15, 2024

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Publicado originalmente na revista Originais Reprovados, volume 18, da Com-Arte Jr (Editoração ECA-USP)

Lembrei de você era o assunto do e-mail que ele recebeu.

Encontrei esse livro e lembrei de você. O nome é Fibrilações. Este era o corpo do e-mail, seguido de quatro versos: A memória é / onde os sonhos adormecem / Despertando / abrem janelas no tempo.

O primeiro contato que ela fazia em mais de um ano.

A primeira reação que ele teve ao pegar o celular, ver a notificação do e-mail, o assunto Lembrei de você e o nome dela como remetente foi de ser engolido pela ansiedade súbita de uma notícia inesperada, mas antecipada. As mãos suaram e o coração acelerou. Quando se falaram da última vez, mais de um ano antes, as mãos também suaram e o coração também acelerou. Naquele momento, também houve a ansiedade súbita de uma notícia inesperada, mas antecipada pelos dois: a despedida ríspida, incongruente. “Então tá, então. Se é o que você quer”. “O que eu quero? Então tá, então, é o que eu quero”. “Então tá”. A ansiedade não discrimina entre alegria e tristeza, ela só prenuncia. Ao ler os quatro versos, a ansiedade começou a se dissipar em prol da dúvida. “Lembrou de mim?”.

A memória é / onde os sonhos adormecem.

Lembrou-se dos dois e lembrou-se deles adormecidos naquela primeira hora da manhã, em que o corpo se ajusta perfeitamente ao colchão e ao lençol e ao corpo da outra pessoa e não há neste mundo nada mais confortável e menos duradouro do que a sensação de aconchego e proteção e descanso. Ao resgatar essas memórias, sentiu a turvação púrpura do sonho. A memória é / onde os sonhos adormecem. Repetiu os versos. […] onde os sonhos adormecem. E então: Despertando / abrem janelas no tempo. Lembrou-se de como era difícil abrir os olhos naquela primeira hora da manhã, de como queria que o tempo se encerrasse ali, naquele instante, para não ter nunca que deixar a cama.

Mas o tempo nunca se encerrou e eles sempre despertavam e sempre deixavam a cama.

Leu e releu e releu e releu. Investigou o poema, procurou pistas de uma mensagem cifrada. Pensou: “Será que ela também se lembrou daquelas manhãs?”

Pensou: “Será que ela também tem saudade daquelas manhãs?”

E só quando pensou nisso é que percebeu que sentia saudade daquelas manhãs. Percebeu a saudade no momento exato em que formulou o pensamento e em que resgatou a memória.

[…] abrem janelas no tempo.

Clicou em Responder e não sabia o que escrever. Não escreveu nada. Decidiu por outra coisa: digitou o nome do livro no Google e entrou no primeiro link disponível. Sem disponibilidade para a sua região. Sem disponibilidade para a sua região. Sem disponibilidade para a sua região. Não estava à venda em nenhuma livraria ou editora do Brasil, a única opção era comprar diretamente da Europa.

R$ 496,16. Quatrocentos e noventa e seis reais e dezesseis centavos o preço do livro de Portugal para o Brasil. Repensou. Será quê? Talvez fosse melhor deixar para lá. Talvez fosse melhor não responder. Talvez fosse melhor não lembrar.

Talvez fosse, mas não foi: comprou. Digitou o número do cartão de crédito, comprou e sentiu um frio subir pelas suas costas quando a notificação do banco apareceu na tela confirmando a compra e pensou que no mês seguinte ele teria um problema. Mas isso seria só no mês seguinte.

Pagamento confirmado.

87 anos antes, em 1929, nascia na cidade do Porto uma mulher. Suja de sangue e de placenta, de olhos fechados e de pele enrugada, ela chorou ao nascer, o que não testemunhamos, mas é possível afirmar com um bom grau de certeza. E como é próprio de quem nasce gente e ainda mais de quem nasce gente e mulher, ela chorou outras vezes enquanto crescia. Foi enquanto crescia que ela descobriu que vivia no berço da língua portuguesa e foi a língua portuguesa, que chamamos de língua materna, que ela aprendeu. Achou outro jeito de sofrer e de sorrir e de chorar e de viver, que era usando as palavras, o que reconhecidamente falta aos recém-nascidos. 75 anos depois de chorar pela primeira vez, um punhado de suas palavras, organizadas em versos, foi impresso em 100 edições numeradas sob o título de Fibrilações. Um ano depois, o livro foi publicado comercialmente, com tradução para o castelhano. 11 anos depois, em 2016, após o momento em que ele apertou Confirmar pedido e recebeu a resposta de Pagamento confirmado, o livro saiu do estoque de uma livraria em Portugal e foi levado até um furgão e o furgão foi até o porto e do porto o livro foi para um contêiner e do contêiner para dentro de um navio e o navio atravessou o oceano e, ao atracar no porto do Brasil, o contêiner foi descarregado em terras brasileiras e o livro foi separado e colocado em um caminhão e do caminhão em uma van e da van para a mão de um fiscal da Receita Federal para ser carimbado e, então, em outra van e, enfim, na bolsa de um entregador dos Correios que, 32 dias depois da compra, bateu em sua casa dizendo “Entrega!”, e o que começou 87 anos antes e passou por tantas mãos sem rostos agora estava nas mãos dele, por R$ 496,16.

32 dias de um e-mail sem resposta. Ele abriu o livro. Leu tudo em menos de meia hora. 44 poemas, quase todos compostos de uma quadra. R$ 11,00 por poema, ele pensou. Ela seria ótima escrevendo poesia para o Instagram, ele pensou. Não sabia o que achar do livro. Não sabia o que responder.

Mais de um ano depois da última vez em que eles se falaram e 32 dias depois de ela ter apertado Enviar com as mãos suadas e o coração acelerado, a notificação chegou: Re: Lembrei de você.

No corpo do e-mail, apenas a foto da mão dele, que ela reconheceu de imediato, segurando o livro. Embaixo, escrito: R$ 496,16. Poesia em euro.

Quando ela, 32 dias antes, apertou o botão Enviar, não sabia o que esperar como resposta. Se receberia alguma resposta. “Então tá, então. Se é o que você quer”. Mas, ao receber a resposta que ele enviou, soube naquele momento que era exatamente a resposta que ela esperava.

Quatro versos, uma estrofe: A memória é / onde os sonhos adormecem / Despertando / abrem janelas no tempo.

Quando ele tirou os dois livrinhos da última caixa da mudança, era essa a página marcada em cada um deles.

Olha só o que eu achei.

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