O milagre cotidiano de Natal

Decorações natalinas, filmes divertidos e o milagre da vida comum

Gabriel Schincariol Cavalcante

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Este texto foi publicado originalmente na newsletter Eu posso estar errado

A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um canto desse pixel, nos quase imperceptíveis habitantes de um outro canto, o quão frequentemente seus malentendidos, o quanto sua ânsia por se matarem, e o quão fervorosamente eles se odeiam. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, em sua gloria e triunfo, eles pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma fração de um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginaria auto-importancia, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, é desafiada por esse pálido ponto de luz — Carl Sagan, em Pálido Ponto Azul

As caixas de papelão que ficavam em um dos quartos da casa da minha avó já teriam sido retiradas do armário nesse momento do ano. De dentro delas sairiam a pequena árvore, os enfeites, a estrela que fica no topo e o emaranhado de fios de luzinhas. Sobre uma mesinha no canto da sala a árvore seria montada com as luzes descendo ao longo do seu corpo e lá ela permaneceria até o Dia de Reis: era Natal. A minha época favorita do ano.

Essa casa da minha avó já não é mais a casa da minha avó e eu não sei para onde as caixas dos enfeites de Natal foram parar, mas é Natal. Na cidade você já pode ver os ônibus piscando, você já pode ver os vendedores com chapeuzinho de Papai Noel, você já pode ver as portas dos vizinhos com alguma decoração. Você já pode ir à barbearia cortar o cabelo e se divertir com os enfeites. Você já pode ver o caminhão da Coca-Cola passar pelas ruas do interior. É Natal.

Quando novo, os presentes ficavam sob a árvore da minha avó. Eu dormia ansioso, lá mesmo na casa dela, para estar pronto para a manhã de Natal. Hoje eu não sou mais o menino que recebe presentes, eu escolho os presentes para as pessoas próximas a mim e me emociono com o que ganho dessas pessoas: não é mais um Max Steel, nem a pista do Hotwheels, mas a alegria que me inunda ainda é, em grande parte, infantil.

É a minha época favorita do ano, o Natal.

É a minha época favorita quando as luzinhas vão inundando a cidade e quando os filmes de Natal são anunciados e quando tudo vai sendo tomado pelo vermelho, pelo verde, pelo branco. O ar fica carregado por essa atmosfera amistosa de camaradagem e eu fico contente outra vez.

Eu fico contente em pensar nas comidas de Natal, nas roupas de Natal, nas músicas de Natal. Eu não sou ingênuo sobre datas comemorativas, mas eu decidi não ser tão cínico.

Há muitos anos, quando eu enfim aceitei a minha descrença em Deus após um longo período de debate interno sobre as consequências dessa aceitação, eu abracei o mais tacanho cinismo ateu. A minha descrença virou irritação: eu me ressentia do Deus que eu tinha me sentido obrigado a temer e agora recusava. Mas eu já não sou mais criança para continuar nesse cinismo de quem bate o pé quando é contrariado. Eu digo Amém quando alguém me diz Deus te abençoe:

Deus te abençoe — Eu posso estar errado — Edição Nº37

Eu não sou ingênuo, mas eu recuso o cinismo. Eu sei que somos pequenos no Grande-esquema-de-todas-as-coisas. Eu sei que somos um pálido ponto azul na galáxia, um pálido ponto azul entre milhões de pálidos pontos azuis e vermelhos e marrons e verdes e amarelos dentro de uma galáxia entre milhões de galáxias nesse infinito universo que culmina no nada. Eu sei que, em perspectiva, nós somos muito pouco. Eu sei que em mil anos talvez não haja mais uma só luz de natal e tudo o que eu vivi e escrevi esteja enterrado com os fósseis do que um dia foi a nossa existência. Eu não sou ingênuo: nós não somos especiais nem escolhidos a dedo nem protagonistas do universo. Mas eu não sou cínico: nós somos quem nós somos, mesmo nesse universo que culmina no nada, e isso é tudo o que nós podemos ser.

Um amigo e eu, sempre que vemos alguém fazendo alguma bobeira na internet, falamos um para o outro: milhões de anos de evolução para chegar neste exato momento. Uma piada sobre tudo o que nos trouxe até aqui. É para tirar sarro, mas tem mais do que isso: uma combinação infindável de acaso que resultou no que nós somos.

Nisso aqui. Nessa vida. Nesse pálido ponto azul.

Uma combinação infindável de pessoas e nós nos encontramos, eu e você. Nós nos encontramos e nós nos abrimos um para o outro e nós nos tornamos amigos e amantes e camaradas e até inimigos, a depender. Contra todas as probabilidades, virássemos a esquerda quando viramos a direita lá atrás e onde é que estaríamos? É um equilíbrio tênue e fantástico, a corda bamba do acaso.

Não sou ingênuo: não há magia. Não sou cínico: há magia. Há magia a cada momento em que enunciamos uma palavra. Viemos a esse mundo assim, sem saber nada, e fomos inseridos na linguagem e passamos a produzir mágica: tudo o que dissemos forma o mundo. Saímos do real e constituímos a realidade. Não há magia de varinhas, há magia de humanidade. Num pálido ponto azul, a linguagem transformou a poeira cósmica em um lar. Transformou nossas vidas em história. Transformou nossos encontros em amor.

Não sou ingênuo, mas também não sou cínico. Se me dizem Deus te abençoe, eu digo Amém.

Quando as luzes de Natal enfim são acesas, quer dizer que mais um ano vai chegando ao fim e que nós continuamos aqui e que muitos outros não continuam e que a nós cabe carregá-los em memória e afeto e luto.

Por exemplo: a receita de rabanada que a minha mãe passou para a minha sogra pelo telefone há alguns natais, quando ela ainda era viva. A receita que a minha sogra segue desde então. Não é magia? Não é magia por meio da linguagem? Não é memória, afeto, luto e amor naquele pão doce na manhã do dia 25 de dezembro?

Toda árvore de Natal me lembra a árvore da minha avó. Toda luz me lembra as luzes de sua casa. É a minha época favorita do ano: por um pequeno intervalo de tempo, nós suspendemos nossas incredulidades e nossos cinismos e nos deixamos abalar por uma brincadeira de criança. Por homens fantasiados de Papai Noel. Por luzes e cores e embrulhos bonitos.

Eu me sento no sofá e coloco um filme divertido de Natal e eu me sinto contente. Eu vejo as decorações e fico alegre.

É a minha época favorita do ano: eu me lembro que milagres são reais. Mas não da forma como nós pensamos em milagres. Um outro tipo de milagre: a sucessão de acasos que constituem a vida que vivemos. O movimento do real para a realidade. A magia da palavra dita.

O milagre do cotidiano. O milagre da vida mais absolutamente comum.

É isso o que me basta.

Se não nos vermos até lá, eu te desejo um Feliz Natal.

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