Gabriel Schincariol Cavalcante
9 min readJan 27, 2020

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Em memória de Kobe Bean Bryant e Gianna ‘Gigi’ Bryant

O basquete não me deixa ir embora.

Essa história não deveria ser sobre mim, mas nós só nos aproximamos do mundo através de nossas experiências e nossas experiências são marcadas pelas ações e pelos impactos causados pelos outros. É assim que carregamos a memória e compreendemos que não estamos sozinhos. Essa história não deveria ser sobre mim, mas não há outra forma de contá-la.

Quando criança eu era maior do que a maioria dos meus colegas e isso naturalmente me levou ao basquete. Primeiro treinávamos no ginásio de Boituva, com o piso de madeira brilhante e as cestas altas. Eu não era bom e ficava frustrado em todo treino.

Um pouco mais tarde, depois que esses treinos acabaram, a cidade estava novamente formando um time. O primeiro treino foi na quadra de concreto rachado da escola em que eu estudava. Os meninos mais velhos (eu tinha doze ou treze anos) me mandaram para o outro lado da quadra, onde as crianças menores que não sabiam jogar brincavam e eu, com vontade de chorar, fui para lá batendo forte a bola no chão. Após alguns minutos o treinador me chamou e disse que eu podia ficar com os meninos mais velhos. Ninguém falou nada.

Eu não era bom e ficava frustrado.

Os treinos saíram do concreto rachado da escola para o salão de eventos da cidade, em que uma tabela de plástico ridícula foi colocada para podermos jogar. Meu joelho já doía e eu terminava todo treino irritado, porque eu não conseguia fazer o que eu queria.

Quando instalamos internet via rádio em casa eu fiquei muito feliz. Finalmente poderia assistir aos vídeos do youtube sem me preocupar com o tempo e sem ter que esperar meia-noite. Primeiro eu digitava o nome do Kobe Bryant no google para saber a ortografia correta e, depois, colava o resultado no youtube. E aí eu passava todo o tempo do mundo vendo as melhores jogadas do cara que vestiu a 8 e, então, vestia a 24. Eu estava fascinado. Minha primeira camisa de basquete foi uma réplica do Lakers, que não era nem a 8 nem a 24, mas foi comprada por causa do Kobe.

Era aquilo que eu via nos vídeos que eu queria fazer.

No salão de festas com a tabela de plástico, no entanto, eu não conseguia fazer nada daquilo.

Eu não era bom e eu estava frustrado. Meu joelho doía.

Eu odiei e abandonei o basquete.

Kobe e Gigi

Mas só é possível odiar algo como eu odiei o basquete com a mesma força propulsora do amor.

Ao entrar na Aeronáutica, fiz a seletiva para a equipe de basquete. Eu nunca estive tão bem fisicamente como eu estava naquele momento. Eu nunca tive tanto tempo para treinar quanto eu tive naquele momento.

Ainda assim eu não conseguia fazer o que eu queria. Eu não pensava mais no Kobe, mas eu queria repetir os seus movimentos. E eu não conseguia.

Dentro de quadra eu vi nosso time virar o jogo contra o Colégio Naval faltando seis segundos, para a primeira vitória da Aeronáutica na NAE em uma década. E também vi, logo em seguida, um jogador da Marinha atravessar a quadra para virar a partida novamente. Deitei no chão e quis chorar.

Eu não era bom o suficiente. Eu não conseguiria. Assim eu desisti do basquete mais uma vez, agora dentro de quadra. Eu não tinha a coragem necessária para dar tudo de mim a alguma coisa e não receber a excelênia em troca.

And so I ran.
I ran up and down every court
After every loose ball for you.
You asked for my hustle
I gave you my heart
Because it came with so much more.

Tradução:

Então eu corri.
Eu corri para cima e para baixo em toda quadra
Atrás de toda bola por você.
Você pediu pelo meu esforço
Eu te dei o meu coração
Porque isso veio com muito mais.

— Kobe Bryant, em Dear Basketball

O que eu não entendia é que não há garantias. Nunca houve. Nunca haverá.

Na última temporada do Kobe, eu voltei a acompanhá-lo, porque o sentimento da minha infância ainda estava vivo. Acompanhei os jogos da temporada de despedida. Acompanhei o carinho de cada adversário. De cada torcida rival. Acompanhei o último jogo. 60 pontos. 50 tentativas de arremesso. A síntese perfeita da carreira de Kobe Bean Bryant: acreditar em todo chute, até o fim, como resultado de um trabalho incansável.

Fiquei com os olhos cheios de lágrimas ao ouvir Mamba out.

Só que eu também conhecia melhor a história do jogador e não podia ignorar os fatos. Sua biografia não poderá apagar o caso de estupro em que ele se envolveu em 2003 e acabou sendo resolvido em um acordo civil. A acusação criminal foi retirada após uma série de reviravoltas e ameaças centradas na vítima. Ainda que a história seja nebulosa, a declaração e o pedido de desculpas do Kobe deixam claro que houve uma violência:

“First, I want to apologize directly to the young woman involved in this incident. I want to apologize to her for my behavior that night and for the consequences she has suffered in the past year. Although this year has been incredibly difficult for me personally, I can only imagine the pain she has had to endure. I also want to apologize to her parents and family members, and to my family and friends and supporters, and to the citizens of Eagle, Colorado.

I also want to make it clear that I do not question the motives of this young woman. No money has been paid to this woman. She has agreed that this statement will not be used against me in the civil case. Although I truly believe this encounter between us was consensual, I recognize now that she did not and does not view this incident the same way I did. After months of reviewing discovery, listening to her attorney, and even her testimony in person, I now understand how she feels that she did not consent to this encounter.

I issue this statement today fully aware that while one part of this case ends today, another remains. I understand that the civil case against me will go forward. That part of this case will be decided by and between the parties directly involved in the incident and will no longer be a financial or emotional drain on the citizens of the state of Colorado.”

Os ídolos não são infalíveis. Os ídolos não são perfeitos. O caso não apaga sua trajetória no esporte, mas não pode ser ele próprio apagado da história. É possível, e talvez necessário, acreditar em recuperação e redenção. É obrigatório, porém, não esquecer do passado.

Na faculdade eu mais uma vez estava no time de basquete. A verdade, por sua vez, é que eu jogava para ocupar o tempo. Era uma forma de passar as horas duas vezes por semana. Eu não estava disposto a me dedicar com todo o meu corpo e toda a minha alma ao jogo. Eu tinha medo.

Nos Jurídicos, contra a PUC, nós perdíamos por um ponto. Faltava pouco tempo no relógio, menos de 20 segundos. O Bruno, do nosso time, tentou um chute de três que acabou sendo um airball. Fizemos a falta em seguida para parar o relógio. A PUC foi para a linha do lance livre e converteu o primeiro. No segundo lance, a bola pegou no aro e foi para fora, sendo recuperada por nós. Atravessamos a quadra. Passamos a bola. Ela caiu de novo na mão do Bruno, que tinha acabado de errar um arremesso livre. Ele flexionou os joelhos e chutou. Eu estava no banco e gritei “Filho da puta”. Alguém atrás de mim gritou “Não”. E a bola caiu com o relógio zerado. Nós viramos o jogo.

Eu estava do lado de fora, porque eu ainda jogava, mas já havia abandonado o jogo há muito tempo. Nós viramos o jogo e vencemos.

And we both know, no matter what I do next
I’ll always be that kid
With the rolled up socks
Garbage can in the corner
:05 seconds on the clock
Ball in my hands.
5 … 4 … 3 … 2 … 1

Tradução:

E nós dois sabemos, não importa o que eu faça depois
Eu sempre serei aquele garoto
Com uma bola de meias
A lata de lixo no canto
:05 segundos no relógio
A bola na minha mão.
5… 4… 3… 2… 1

Eu ainda amava o basquete. E eu queria que o basquete me amasse de volta.

Ver as imagens no Instagram do Kobe com a Gigi, uma de suas quatro filhas, sempre me fez feliz. Ver os dois na quadra, ver o pai, uma lenda do basquete, orientando sua filha nos treinos, nos jogos, ver os dois dividindo o espaço das quatro linhas, aquilo sempre me fez feliz. Era o amor de um pai, de uma filha e o amor do basquete. Imaginando o futuro eu pensava em fazer a mesma coisa com os meus filhos. Dar a eles algo que eu amo. Dividir com eles o amor. Vê-los descobrir o poder do amor e da frustração e do ódio. Vê-los desistir. Vê-los perservar.

Eu também sentia a inveja. A Gigi era muito melhor do que eu jamais fui ou serei. Isso me faz rir um pouquinho.

Foi de supetão, como as coisas geralmente são comigo, que eu percebi que não havia mais tanto tempo assim. A minha cabeça mantém tudo numa nebulosidade angustiante antes de me ofertar a resposta final.

É assim que eu escrevo. Eu me alimento de tudo o que me cerca e espero a resposta. Eu amo a escrita. E espero que ela me ame de volta.

Eu vivo como eu escrevo.

Foi assim que eu percebi. O basquete jamais me amaria de volta se eu não desse tudo de mim. Tenho pouco tempo. Não sou nem serei profissional. Jogo por recreação. Meus dois joelhos doem, o esquerdo em especial. Eu estava acima do peso. Eu era displicente. Logo estarei formado, logo o basquete será apenas um evento casual para quando o tempo colaborar.

Eu tive medo. E tive medo, porque se eu abandonei o basquete diversas vezes, ele nunca me abandonou. O basquetebol sempre deu um jeito de voltar para a minha vida. E estava na hora de eu demonstrar algum respeito por ele.

Todos os dias. Todas as horas vagas. Na academia. Na quadra. Na pista.

Outra vez eu estava assistindo aos vídeos do Kobe, agora não dentro do jogo, mas fora dalí, explicando o seu processo. O seu processo de esforço interminável, de competitividade extrema.

Eu jamais poderia ser o Kobe. Eu sou quem eu sou. Mas eu poderia me esforçar como ele se esforçou.

Quando o meu joelho dói e meu corpo pede para que eu abandone o jogo, eu penso no Kobe arremessando os dois lances com o tendão de Aquiles rompido. Essa é a imagem que sempre volta à minha cabeça.

Eu não poderei repetir o fadeaway do Kobe Bryant. Mas eu posso fazer outras coisas.

Em alguma medida eu estou realizando o meu sonho de menino.

Eu estou amando o jogo, estou me entregando ao jogo, mesmo que o jogo nunca se entregue completamente para mim.

É assim que funciona o amor. Não há garantias. Nunca houve. Nunca haverá.

Quando a notícia da morte do Kobe se confirmou e, mais tarde, também foi confirmada a morte da Gigi, eu me abalei. É inconcebível que o Kobe esteja morto. É inconcebível que a Gigi, aos 13 anos, esteja morta.

Mas também não é.

A vida é bastante frágil. Nós só precisamos fingir o contrário para suportarmos todo esse peso.

Nós precisamos de um terreno seguro e o amanhã é pura areia movediça.

Você pode se esforçar dia após dia, você pode dedicar toda a sua existência, e pode não ser o suficiente. Um helicóptero pode cair na manhã nebulosa de Los Angeles.

Porque não há garantias. Saber que não há garantias é aterrorizante e a vontade é de parar agora, parar de planejar, parar de pensar, parar com tudo, porque tudo é irrelevante.

Mas nós não paramos. Nós sabemos que não há garantias e nós continuamos. Porque nós temos algo humano dentro de nós que é a esperança de que o amanhã virá e depois de amanhã, também.

Não há garantias. Mas há o amor. É assim que nós compensamos o inevitável.

Boa jornada e bom descanso, Kobe. Boa jornada e bom descanso, Gigi.

“you can’t beat death but
you can beat death
in life,
sometimes.”

“você não pode vencer a morte mas
você pode vencer a morte
em vida,
às vezes”.

— Charles Bukowski, em The laughing heart.

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