MAIS UMA NÃO-HISTÓRIA
10–5–19, sp
Essa é mais uma das cartas que eu te escrevo sem você receber, pois não envio cartas, e estou certo de que esta não será a última. Sempre há o que se dizer.
Sempre há o que se dizer pois nós não fomos nada, nunca, além de uma ideia do vir a ser, remota possibilidade, então nesse vazio do que não fomos posso acumular as minhas palavras que um dia você temeu não serem para você, e agora te digo: você tinha razão, elas não eram, porque todas essas palavras são minhas e para mim, até o momento em que são expelidas, aí já não são de ninguém, a não ser de quem as lê. Você tinha e não tinha razão. Sobre a inspiração, se ela repousa em você, se repousa no seu rosto, se repousa na sua voz, essa é uma questão que eu nunca respondo dada a sua intrínseca irrelevância e, ademais, como eu poderia responder? O que se faz com o antes diante do depois? Nada. Esse remexer no passado é um exercício próprio da loucura e se eu ainda não me calei e permaneço escrevendo é pelo desespero da sanidade. Portanto, se você se reconhece naquelas linhas ou nessas linhas, tome-as com carinho como suas e as carregue na sua lembrança e no seu peito como organismos vivos e independentes, independentes de mim. Não que eu deseje o seu esquecimento mas não anseio uma memória vazia. Se você não se reconhecer, saiba que nem tudo é espelho e o opaco ainda tem o que oferecer. Assim, é tudo sobre você. Nada é sobre você. Não são os seus olhos, afinal, que correm por essas linhas?
Somos íntimos. Muito íntimos. O que você vê é a nudez devassa. A distância e o tempo são medidas impróprias aqui, nesse campo dos desvairados sentimentos e sentimos tanto, sentimos muito. Eu sinto muito.
Às vezes lamento não termos sido nada além disso. Por outro lado, o campo que se abre a partir daí é inesgotável. Cansaríamos de tanto corrermos descalços. Se fôssemos, não estaríamos atados aos absurdos limites da realidade?
Enfim. Peço desculpas por tudo isso. Esqueça o que eu disse. Lembre muito bem. Onde eu estou com a cabeça? A resposta é óbvia. Sou feito disso, aspirações fantasiosas.
Eu sequer existo. Você sequer existe. É tudo invenção, como todo o resto.