Homem, hominho, homão

A verdade é que eu e a gramática nunca nos afeiçoamos completamente; com um misto de respeito e mistério, eu a observo mais de longe do que de perto, compreendendo o básico de seus meandros, o suficiente para que, de ouvido e pelo ritmo, eu seja capaz de minimamente crer que aquilo que eu escrevo está certo. Ao longo dos anos e ao longo das milhares de palavras escritas, meu instinto foi se apurando, não sem percalços, o que faz com que eu seja capaz de olhar para as minhas frases e dizer: parece certo, parece errado. Quando estou entre um e outro, incapaz de decidir, opto pelo caminho da liberdade criativa. Se você é confiante o suficiente na sua escrita, você pode chamar eventuais equívocos gramaticais de estilo. Com um misto de respeito e mistério, eu cultivo a deferência de quem se guia pela linguagem para viver diante da gramática, mas não me paraliso: a linguagem vem primeiro, a gramática vem depois. Escrever está entre um ponto e outro. Quando algum desavisado, confundindo o fato de eu escrever com a premissa de que eu domino a gramática, vem até mim e diz: Gabriel, você que é bom nessas coisas, confere para ver se eu escrevi certo, eu disfarço e ponho no rosto a minha expressão mais compenetrada para, com base na mais desfacetada improvisação, dizer: parece certo, parece errado.

Eu era um menininho quando a lembrança fundamental se formou: na sala de aula, eu segurava o lápis e escrevia o meu nome pela primeira vez. GABRIEL, sob o olhar atento da professora, que eu chamava de Tia. GABRIEL, GABRIEL, GABRIEL. Então este é o meu nome, GABRIEL, o som que eu ouvi desde que nasci agora reproduzido com grafite sobre o papel. O sobrenome deve ter levado mais tempo, cheio de letras que é, mas um dia eu também aprendi. Eu era um menininho e não poderia sequer conceber o que aquele ato representaria (a minha vida toda), porque, até então, escrever meu nome era só mais um passo de uma vida cheia de descobertas.

Depois que aprendi a escrever meu nome e a reconhecer o que as palavras significavam, passei a adorar ler as placas — porque eu podia — , adorar ler os rótulos — porque eu podia — , adorar entender a junção das letras. Adorava, também, fingir que escrevia (sem saber que no fingir estava a fundação da coisa toda): nos desenhos, os livros e cadernos sempre estão preenchidos com ondinhas que simulam as palavras. Nas brincadeiras de criança, eu enchia os papéis com essas ondinhas, inventando histórias sem palavras.

Este hábito originou o conto Pedagogia de menino, que está no livro Um mundo em que existem baleias, e que começa assim:

Primeiro se vê com os olhos e não se sabe bem o que se vê, é preciso nomear. O que eu vejo, se pergunta, e daí começa buscar, com o que já conhece e já nomeou, a resposta para a questão primeira. Vê-se com os olhos, observa, o que eu vejo? Vê a mão adulta e cheia de pelos segurar a caneta sobre a folha de papel e se mover para cima, para baixo e para os lados, e o papel ser preenchi- do com a tinta em círculos, retas, pontos, espaços, riscos, estrelas, bocas, narizes, orelhas.

Um monte de ondinhas no pedaço de papel.

A mão adulta e cheia de pelos que vê não faz o que sua mão menina faz, que é rabiscar em forma imperfeita as imagens que a mente produz. O sol, a lua, as nuvens, papai, mamãe, a irmãzinha, a casa, o cachorro, os gatos, os periquitos. Rabiscos e rabiscos e rabiscos na forma perfeita, porque primeiro é preciso nomear, como não domina os nomes ainda não faz comunicar bem a mente e a mão e o papel. Há tempo, muito tempo.

Primeiro se vê.

Primeiro se vê, depois nomeia, depois normatiza. Quanto mais palavras aprendi, menos ondinhas eu fazia, substituídas pelas letras no meu insuperável garrancho.

Foi aos sete ou talvez aos oito anos que o fascínio deu lugar ao primeiro horror: tínhamos uma simples lição de casa, que consistia em pegar as palavras da coluna da esquerda — todas palavras que já conhecíamos, como casa, carro, homem — e, nas colunas seguintes, escrevê-las no aumentativo ou diminutivo. A mim não causou nenhum espanto, era a mais fácil das tarefas: para mais, -ão; para menos, -inho. Assim eu aprendi, assim eu faria.

Assim eu fiz. Preenchi a folha bem rápido, entreguei para a minha mãe conferir e fui brincar com os meus bonecos.

Não demorou nem cinco minutos para que eu ouvisse seus berros: o que significa isso, Gabriel?, perguntou apontando para a folha.

O que eu deveria responder? Significa o que significa, a lição de casa. Você precisa parar de ser desleixado, ela disse, porque inteligente você é, mas você faz tudo desse jeito. Desse jeito, eu entenderia depois, significa do jeito errado, às avessas, pela direita quando deveria ser pela esquerda etc.

Eu continuava sem entender. O que eu fiz?, perguntei.

Fez tudo errado, ela disse.

Não fiz, não, eu disse.

Claro que fez, ela disse. Olha aqui: o que é casão?

Uma casa grande, eu respondi.

Não se faça de bobo, ela disse.

Eu não estava me fazendo de bobo.

Aumentativo de casa, Gabriel, é casarão! O diminutivo, casebre.

Protestei: não é, não, porque diminutivo é com inho. Assim eu aprendi, assim eu fiz.

E isso aqui? Homem, hominho, homão?

Dei de ombros. O que tem?

Diminutivo de homem é homenzinho, aumentativo, homenzarrão.

Nunca tinha ouvido a palavra homenzarrão na minha vida e apesar de a minha mãe estar quase sempre certa, ali ela só poderia estar errada: que diabo de palavra é homenzarrão? Homão é um homem grande, homenzarrão eu não faço ideia do que seja.

Fiquei transtornado. Então havia muita coisa que eu não sabia, as regras não eram claras nem universais, tudo era misterioso e eu estava de volta às ondinhas. Vencido, derrotado, apaguei tudo o que minha mãe apontou como errado para substituir pelo que, inaceitavelmente, estava correto.

Casa, casebre, casarão.

Homem, homenzinho, homenzarrão.

Da ponta do lápis saíam palavras com o gosto mais amargo que eu jamais havia sentido. A gramática havia me vencido pela primeira vez.

Quando me sentei, mais tarde, para brincar com meus bonecos, encarei os brinquedos que eu chamava muito naturalmente de hominhos e pensei: homenzinhos. Homenzinhos.

A gramática havia me vencido na lição de casa, mas não venceria no faz de conta. Irresignado, continuei chamando meus bonecos de hominho. Homenzinho tem lugar na gramática; os hominhos e os homãos ocupam um espaço muito mais importante.

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