HOJE FIQUEI NU
12–7–19
Sinto esse gosto estranho na boca, é um gosto espesso que se estende por tudo, dentes, goela, língua. Gosto enferrujado na boca. Não sei bem o que sinto.
Sei que não sou o mesmo. Ou sou o mesmo. Ou finalmente sou quem sou e por muito tempo não fui. Não sou alguém, eu sou algo, algo feito de algo, um amontoado de coisas, olha só essa casa, quanto eletrônico, quanta bugiganga, fui eu que comprei, comprei tudo isso, paguei com o meu dinheiro, com o cartão de crédito, com crediário, olha só, olha a tevê, o tamanho da tevê, olha o sofá, a poltrona reclina, o sofá vira cama, olha o som, olha o tapete, olha a cama king-size, olha só tudo isso.
Não é tudo vazio?
Comprei tudo isso e paradoxalmente tudo ficou mais e mais vazio. Aprendi não faz muito o que quer dizer paradoxalmente. Na internet, agora no celular tenho internet o dia todo, agora tenho internet onde eu vou, agora é um clique e falo com todo mundo, agora eu não me calo, agora ninguém nunca se cala, agora eu não ligo mais essa tevê enorme que fica na minha sala porque no meu celular chega toda a informação que eu preciso, na verdade eu não uso quase nada que tenho em casa, vou comprando e pagando, comprando e pagando, mais comprando do que pagando, eu não posso mais pagar e agora recebo cartas que ficam em cima da mesa acumuladas me dizendo o quanto eu devo. Paradoxalmente. Aprendi na internet o significado. Aprendo muito na internet. Tudo a um clique. O celular vibra e chega a mensagem e eu aprendo algo novo.
A terra é mesmo redonda?
São questões. É preciso estar sempre se questionando. Eu sempre me questiono. Não sei quando começou, agora que eu me pergunto tanto eu nem sei do que sou feito, mas eu sei quem eu não sou.
Não sou feito aquela gente ali. Ali, olha.
A gente escura. A gente suja. A gente da rua. A gente do cabelo armado. A gente da camiseta vermelha. Olha.
Eu não vim de lá, não.
Eu vim de lá. Mas eu não sou de lá, entende? É diferente.
Olha.
Eu vim de lá mas não sou de lá, eu sou diferente, entende? Eu comprei tudo isso, a teve enorme, a geladeira, o sofá que vira cama. Tudo no cartão de crédito. Crediário. Foi de quando a minha vida melhorou. Foi naquele tempo lá atrás. Melhorou muito. Agora não melhora mais. Culpa deles. Dessa gente de vermelho. Culpa dessa gente suja. Desses imundos.
Estúpidos.
Eu vim de lá mas não sou de lá, é diferente. A vida melhorou muito mas melhorou só por que eu trabalhei muito. O cartão de crédito, o crediário, tudo isso, a casa cheia de coisa.
Paradoxalmente vazia. O gosto na minha boca que é gozado, não passa, fica preso na bochecha, na garganta. Eu sinto o gosto e não sei do que é. É feito mastigar um corrimão.
Melhorou muito mas agora piorou. Culpa deles, desses vermelhos, essa gente podre, essa gente imunda. Eu não. Eu não sou como eles. Eles são ignorantes. Eles não recebem essas mensagens que eu recebo, olha só aqui no celular essa última, viu?
Agora eu só tomo essa água salinizada. É tiro e queda. Câncer de pulmão querem te fazer acreditar que é do cigarro, mas não é, é da água que você toma de galão. O sal mata.
E a terra, será que é redonda mesmo? Sei não.
Eu vim de lá mas eu não sou como eles. É diferente. Eu sou outra pessoa, eles nem são gente, são porcos, são ratazanas. Tem que acabar, eu acho. Nada contra. Só que não dá pra aceitar. Essa gente estúpida.
MORTADELA.
Olha como eles ficam alvoroçados?
É importante gente como a gente, como esse aí que tá lá, gente honesta, gente firme, disposta a fazer o bem. Eu faço tudo isso pelo bem.
Essa gente vermelha aí tem que ser exterminada, eles são um empecilho para o bem. Eu queria comprar um carro novo. Tá vazio aqui.
É tudo pelo bem, sabe? Eu não sou como eles. Sou gente do bem. Eles não são, tem que acabar, botar fogo, sumir com eles de vez, aí a gente segue bem.
Quem é esse aí gritando? Você ouve? Olha só lá fora, pela janela.
O REI ESTÁ NU.
O REI ESTÁ NU.
O REI ESTÁ NU.
Quem é esse arrombado viadinho do caralho gritando que o rei está nu?
Por que o rei está andando nu pela rua com o pau para lá e para cá?
Não importa, o rei é o rei. O rei sabe das coisas. O rei sabe mesmo sem saber. Será que ele sabe que gosto é esse que eu sinto na boca?
O REI ESTÁ NU.
Tem que calar a boca desse cara. Mas o rei, que coisa é essa, precisa disso? Mas esse cara aí que tá gritando que é o problema, tem que respeitar o rei, o rei sabe o que faz, se o rei está nu ele tem motivo para estar nu. Tem que entender a motivação do rei.
Os vermelhos não faziam muito pior?
Não sei o que faziam, mas faziam. Claro que faziam. Olha essa gente escura e imunda. Vestem roupas. Ridículos. Certo é o rei, que está nu.
Vou dar dois tiros para cima daqui para sumir com essa gente, com esse cara que grita que o rei está nu.
Olha como eles ficaram assustados. Vou dar mais dois tiros, um pouco mais para baixo.
É engraçado como eles se movem. Por que o cara não se cala?
O REI ESTÁ NU.
Essa gente escura e suja e vermelha, esse cara, esse arrombado viadinho de merda, essa gente é o mal que nos impede de avançar. Vou dar mais dois tiros. Um pouco mais para baixo. Um pouquinho mais. Na direção dessa gente. Na direção desse cara.
Bem na cabecinha.
Assim, na cabecinha do cara que grita O REI ESTÁ NU.
Não é melhor assim, esse silêncio? Chegou uma mensagem, sabe o que ela diz? Que era mentira, que o rei não estava nu. E daí que eu vi o rei andando aqui na frente com o pau para fora? Não vá me dizer que você é um deles?
Agora eu sei que gosto é esse que eu sinto na boca. É gosto de sangue e eu gosto do que eu sinto.
*Em 12.07.2019 apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e do ex-juiz Sergio Moro protestaram contra a presença do jornalista Glenn Greenwald na programação paralela da FLIP, em Paraty. O jornalista, vencedor do Pulitzer pelas reportagens sobre os abusos cometidos pela NSA (agência de inteligência americana), tem publicado uma sequência de artigos que revelam diálogos da força-tarefa da Lava Jato entre si e com o então juiz Moro, que indicam uma ilegal quebra da imparcialidade do juízo por atuar no direcionamento da atividade do Ministério Público, em afronta ao Código de Processo Penal brasileiro. Os apoiadores do presidente e do ex-juiz, agora ministro da justiça, viraram suas forças para o jornalista e sua equipe, acusando-os de conluio com forças comunistas internacionais, a partir de informações notoriamente falsas. No protesto durante a FLIP, Glenn falava no “barco pirata” da FLIPEI, enquanto do outro lado do rio o pequeno grupo tocava o hino nacional em um carro de som. Em determinado momento os manifestantes passaram a estourar fogos de artífico para impedir o prosseguimento da palestra; esses fogos começaram a ser direcionados cada vez mais para baixo, diretamente para o barco em que o Glenn estava. As explosões ocorreram a poucos metros da embarcação e os manifestantes se esforçavam para chegar cada vez mais perto. A polícia do Rio de Janeiro acompanhava a situação, sem demonstrar preocupação, até a intervenção da mediadora da palestra, que ressaltou na caixa de som o risco que a situação envolvia. A intenção dos manifestantes parecia ser mesmo atingir o barco e, em especial, o jornalista Glenn Greenwald. Não houve ato de violência por parte dos espectadores da FLIPEI.