HISTÓRIA É TUDO O QUE EU NÃO VIVI

Sua foto e a saudade impossível do que ouvi-falar

Gabriel Schincariol Cavalcante

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É claro que eu sei que havia um mundo antes de mim e é claro que eu sei que haverá um mundo depois de mim: sendo gente, sou capaz de compreender a existência do tempo, cuja premissa é que somos passageiros, pelo que se supõe que uma coisa vem depois da outra. Sendo gente, sou capaz de compreender, e talvez tenha sido no momento em que me tornei capaz de compreensão que me tornei, realmente, gente, que meu tempo é limitado, outra forma de dizer: sei que vou morrer.

É claro que eu sei disso tudo, mas o que veio depois de mim e o que virá depois de mim não integram a minha experiência: é ouvi-dizer, abstrato para mim, apesar de concreto para todos que vieram antes e para todos os que virão depois. É claro que eu sei que vou morrer, mas a minha morte não integra a minha experiência, pelo contrário: encerra. É, no fim das contas, um exercício de imaginação.

É claro que, ao olhar essa foto, eu sei que é você quem está retratada. Eu sei, porque te reconheço, porque te conheço, mas é também um exercício de imaginação: te conheci muito depois dessa foto, quando eu nasci do seu ventre. A mulher da foto viria-a-ser minha mãe. Eu reconheço seus traços e quem você veio-a-ser e, para mim, foi, mas quem você era não integra a minha experiência. É só essa imagem, a prova de que você existia antes de mim, o poder arbitrário da fotografia.

Essa foto me atrai como um convite para além-do-meu-Tempo: a prova da existência concreta da história, pelo processo químico fotográfico em que a sua luz ficou impregnada na fotografia impressa. São três pessoas, você no meio e eu não sei quem são as outras duas. Só você olha para a foto: só você via o fotógrafo e eu o invejo sem o conhecer, porque esse momento em que você encara a lente está fixado para sempre. Das três pessoas, só você sabe o que está para acontecer, isso é, o dedo pressionando o botão para acionar o obturador. Só você sabe e você não sorri, mas seu rosto está se formando num sorriso. O cabelo molhado da água, o biquine, as pernas cruzadas. Você encara a foto e é como se me encarasse, mas é ilusão: sou eu quem encaro quem-você-foi, antes de mim. A prova do tempo, a prova da história, a prova da existência.

A prova da não-existência: a minha própria. Um tempo em que eu não existia. Um mundo que eu não habitei. Vim depois, de você. Eu sou a prova viva de que você existiu, a sua morte integra a minha experiência, assim como a sua vida. Condição sinequanon. Nessa foto, porém, a minha existência é irrelevante, porque ainda não concretizada.

Essa foto é a própria História. É para ela que olho como prova da minha ausência: [a] História é histérica: ela só se constitui se a olhamos — e para olhá-la é preciso estar excluído dela. Como criatura viva, sou o contrário da História, o que a desmente, a destrói em benefício de minha história apenas.

Essa foto me convida à reflexão: quem foi você antes de mim? Quem foi você nas histórias em que eu apenas Ouvi-falar? Nas histórias históricas, que me excluem pela minha até então inexistência? Quem é, no presente da foto em que você quase sorri, essa mulher que encara a lente?

Sinto sua falta, é claro, todos os dias. Mas essa foto me causa uma outra saudade impossível: a saudade da pessoa que eu jamais conheci, a pessoa antes-de-mim. Essa foto me causa uma saudade impossível: a saudade do passado da minha ausência. Essa foto me causa um vazio impreenchível: o vazio de estar fadado a ser, apenas e tão somente, quem eu sou, quando eu sou (agora, no meu próprio tempo).

Encaro essa foto como um espelho sem reflexo: eu me vejo sem me ver. Eu te vejo sem te ver. Vejo Outro, Outra, que sei que é você, que estava-para-ser você, que viria-a-ser. Eu me vejo: os traços da minha mãe. Eu te vejo: a mulher antes de ser a minha mãe. Encaro essa foto como um espelho opaco. Encaro essa foto como uma barreira intransponível.

Encaro essa foto e me sinto obrigado a escrever, inventar, criar, expulsar os limites do aqui e do agora. Encaro essa foto e me sinto obrigado a alargar minha experiência pela ficção.

É claro que eu sei que havia um mundo antes de mim e haverá um mundo depois de mim e é claro que eu sei que um dia eu vou morrer. É claro que eu sei que o tempo existe e passa, levando-me a reboque. É claro que eu sei que essa foto não importa a quase mais ninguém, porque dessa História eles são espectadores enquanto eu sou fruto. Eu sei muita coisa, mas quando encaro essa foto eu percebo imediatamente a máxima invencível:

que o que eu não sei é, necessária e insuportavelmente, muito maior do que aquilo que eu sei.

É a condição sinequanon de ser um fragmento do tempo. Essa foto é a derrota momentânea do tempo: sua fixação, em desacordo com a regra universal de que tudo passa. Essa foto não passa, o instante em que só você encara a câmera. As luzes foram captadas e agora são refletidas em meus olhos e, assim, preto-e-branco, nós nos encontramos mais uma vez, pela primeira vez: a luz de quem você-foi, antes de mim, encontrando quem eu-sou, depois de você.

Chamou o teórico esse sentimento de O sofrimento do amor. Não sei se sofro, mas é um bom nome. Não sei se sofro, mas amo.

Resta suportar a saudade impossível.

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