Eu posso estar errado — Edição Nº23

Gabriel Schincariol Cavalcante
5 min readFeb 6, 2022

“O ano era 2005…”

Publicado originalmente na newsletter Eu posso estar errado

“Sky diver” para Nokia, com cor

O primeiro celular, os ringtones, a bina

Foi na garagem de piso vermelho da casa do meu pai que eu fiquei fascinado pela primeira vez pela tecnologia móvel. Celular não era tão popular na época, poucas pessoas tinham. Minha mãe tinha um modelo simples, sem grandes funcionalidades além da função elementar: fazer e receber ligações. Minha irmã ganhou um de aniversário, em uma surpresa da minha mãe, e apesar de eu ter achado interessante e ter ficado com a natural inveja de irmão mais novo, não foi assim tão incrível.

Até eu ver o que eu vi na garagem do meu pai.

Estávamos em quatro, talvez. Quatro ou cinco. Eu e o Júlio César, que tinha a mesma idade que eu, e mais dois ou três amigos da rua, esses mais velhos que nós por não muito tempo. Um deles tinha um celular Nokia azul antigo, modelo 2280. Era um aparelho simplezinho, com a tela quadrada. Mas ela tinha algo que eu nunca tinha visto antes: um jogo de paraquedista.

Para contexto, talvez seja importante dizer que eu nasci e passei a maior parte da vida em Boituva, a capital nacional do paraquedismo (ao menos é assim que a cidade se denomina). Então paraquedas é algo natural na minha vida. Ver, de repente, na tela de um celular um joguinho preto e branco, básico, em que um paraquedista composto por pixels acinzentados caía do céu sob o controle do jogador era incrível. Inimaginável. Inalcançável.

Enquanto esse amigo jogava o Sky diver eu assistia a tudo embasbacado, curioso, profundamente transformado pela ideia de que era possível controlar um paraquedista num celular.

Quando voltei para a casa da minha mãe no domingo, imediatamente perguntei para ela se tinha aquele jogo no seu celular. A resposta foi não. Perguntei para a minha irmã. Não também, só o famoso Snake.

Eu não conseguia parar de desejar aquele Nokia 2280.

Levou alguns meses até eu ganhar meu primeiro celular, depois de muita, muita insistência. Eu ficava vendo os catálogos das operadoras e dizia para a minha mãe ou meu pai: olha esse, é barato; olha esse outro, é barato. E eles me explicavam: é mais barato no plano pós-pago, e eu perguntava E daí? Para mim não havia diferença, não parecia haver. Para eles havia, então meus argumentos eram em vão.

No meu aniversário meu pai, junto com a minha mãe, comprou um aparelho para mim. Um samsung, muito parecido com o Nokia 2280, mas sem o jogo do paraquedas. A falta do jogo me entristeceu, mas eu estava contente por ter um celular. Era preciso ligar na operadora para ativar o serviço de bina, em que o número da pessoa que estava te ligando aparecia na tela do celular. Eu liguei, solicitei a ativação e fui informado de que poderia levar até 48 horas. Passei as horas seguintes me ligando do telefone fixo reiteradamente (foi ótimo para eu decorar meu próprio número). Quando finalmente o número apareceu na tela (263–3329, eu acho, na época), eu comemorei como se tivesse conquistado o mundo inteiro.

Meu passatempo era ficar fuçando no celular, trocando os ringtones, escolhendo o toque ideal para cada contato — minha mãe, meu pai, minha irmã, minha vó. Alguém compartilhou esses dias no instagram um meme que dizia algo assim: “o ano era 2005 e eu baixava milhares de ringtones, agora meu celular vive no silencioso”. Foi por isso que eu lembrei dessa história toda.

Um tempo mais tarde eu troquei esse samsung branquinho por uma versão atualizada do Nokia 2280, em que o Sky diver já era colorido. Esse modelo também gravava áudios pelo seu microfone e esses áudios podiam ser utilizados como toque de chamada. Usando as incríveis ferramentas da pirataria de MP3 com softwares como eMule, LimeWire, Ares, e afins eu baixei dezenas, centenas de músicas no meu computador, junto com uma infinidade de vírus, e gravei as músicas no meu celular a partir das caixas de som do computador.

Assim eu tive meu primeiro toque que era uma música, e meu despertador também virou alguma música qualquer que eu, inevitavelmente, passei a odiar mais tarde.

Não perturbe

Talvez eu esteja enganado, mas eu acho que eu perdi esse Nokia. Esqueci em algum lugar e nunca mais o vi. E tomei um esporro do tamanho da minha cara de cu quando contei para a minha mãe.

Desde então os celulares foram evoluindo, avançando, e a presença dos aparelhos móveis na vida cotidiana se tornou imensa, indispensável.

Na escola era comum o envio de músicas pelo bluetooth. Quem tinha o famoso Motorola V3 era rei. Eu tive um Sony Ericsson Walkman que não tinha bluetooth, só infravermelho, então fui renegado no tráfico de músicas e vídeos engraçados.

Tive também um LG Chocolate.

Tive um glorioso Nokia e71, um celular com teclado completo. Foi um momento de transformação na minha relação com os celulares, porque foi no Nokia e71 que eu usei o WhatsApp pela primeira vez — como um velho amigo me lembrou, e ele também tinha o Nokia e71 e só nós dois usávamos o WhatsApp na época. Se foi um avanço tecnológico nas comunicações, não foi sem ônus.

Era normal ter uma música específica para o toque de chamada, um toque para sms, um toque para WhatsApp. Não recebíamos tantas notificações assim.

Usei a internet do Nokia e71 várias vezes para passar nas provas de Física.

Depois do Nokia e71 tive um outro celular da LG, depois um iPhone, depois um Motorola, que foi roubado, depois outro Motorola igual, depois um Xiaomi e agora outro Xiaomi.

É muito possível que nesse meio tempo eu tenha tido outros aparelhos, mas não por períodos significativos.

Fato é que depois do Nokia e71 eu não lembro mais de ter uma música como toque para chamadas. Todos os meus celulares passaram a ficar no silencioso. As notificações, com a popularização do WhatsApp, explodiram. Aí veio o facebook mobile, twitter mobile, tudo mobile, e agora tudo está disponível no celular e a cada instante chegam notificações do iFood, da Rappi, do MercadoLivre, do e-mail, do facebook, do twitter, do aplicativo da academia, do duolingo, do instagram, do Medium, sms de golpe, informação de fatura fechada, TikTok, LinkedIn, Teams, etc, etc, etc.

A mera ideia de manter o celular com algum toque para notificação me deixa maluco. Avancei do Silencioso para o Não perturbe. Meu celular não vibra mais a cada notificação, só em caso de ligação. A tela não acende.

Faz uns cinco, seis anos que o modo Não perturbe está ativado ininterruptamente nos meus aparelhos.

No entanto, já fui sugado definitivamente por esse hiper-estímulo da contemporaneidade e não consigo deixar de olhar o celular a todo instante, verificando se alguma notificação chegou, se tem alguma coisa acontecendo, se eu estou perdendo alguma informação.

Meu despertador não é mais uma música, é um toque padrão do celular.

Não tenho nenhum joguinho no celular, que, sem dúvida, é muito mais poderoso, em termos de hardware, do que o computador que eu usava lá em 2005.

Minha sobrinha de oito anos tem um celular. A mais nova também. O pasmo de ver uma tecnologia tão inovadora é passado.

Meu celular contém meu treino da academia, acesso aos bancos, milhares de informações pessoais. Sky diver é só uma memória afetiva.

Assim como o piso vermelho da garagem da casa do meu pai.

Um bando de lembranças escondidas por trás do Não perturbe, que tenta cumprir sua função, mas não consegue, vencido pela minha ansiedade.

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