Eu perdi

O corolário da vitória é a derrota. Ou: como continuar perdendo quando se odeia perder

Gabriel Schincariol Cavalcante

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Este texto foi publicado originalmente na newsletter Eu posso estar errado

Mundial No-Gi CBJJE — Super-pesado — M1–28.01.2024

Foram meses de treino e preparação, dezenas ou centenas de horas rolando no chão. A dor no corpo virou rotina. O cotovelo lesionado precisou de três semanas para voltar ao normal. De segunda a sexta, fui ao tatame e treinei, repeti diversas vezes as mesmas posições, bati, apanhei.

Então, em 1 minuto e 49 segundos, estava tudo acabado. A luta havia sido encerrada.

Eu perdi.

Há meses está no meu rascunho o texto A outra face da excelência, e o objeto deste texto seria explorar o custo que atletas de alto desempenho pagam para atingirem o posto mais alto em seus esportes. A foto que ilustra o rascunho é a icônica imagem do Michael Jordan arremessando sobre Craig Ehlo contra os Cavaliers no jogo final da primeira rodada dos playoffs da temporada de 1989 da NBA, o que ficou conhecido como The Shot.

Jordan, assim como muitos outros atletas profissionais de alto rendimento, era conhecido pela sua obsessão com a vitória, o que passava, necessariamente, pela obsessão com o treinamento e com a preparação. O próprio Jordan chamou sua obsessão de maldição, e Zack Telander fez um ensaio em vídeo sobre como a mentalidade dos campeões é, na maioria das vezes, uma mentalidade tóxica. Para o público, é ótimo. Para o atleta, nem tanto.

Este era o texto salvo no meu rascunho, mas não o texto que eu vou escrever. O texto seria sobre o custo da vitória, mas eu não quero falar sobre vencedores. Porque eu perdi.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Eu conheci quem tivesse levado porrada: eu levei.

Eu perdi. Em 1 minuto e 49 segundos, com o pescoço dolorido e um zumbido no ouvido direito, eu perdi. E é mais do que provável que eu continue perdendo no futuro. Este é o texto que eu vou escrever.

Se você tem lido o que eu escrevo nos últimos tempos, você sabe da minha relação com o basquete — e com a atividade física. Uma relação em três atos: de resistência, de afastamento e de aceitação. Foi preciso toda uma vida para que eu aceitasse o risco de ser um jogador ruim como o preço a se pagar para esta em quadra e jogar o esporte que eu amo.

Desde que eu me formei na faculdade, a minha vida no basquete competitivo chegou ao fim. Passei a jogar em um racha toda quarta-feira com alguns amigos e desconhecidos e eu me divertia, e me estressava e me alegrava. Mas era diferente. Era diferente de ir treinar, de praticar para melhorar, de entrar em quadra para competir. A verdade é que eu sou atraído por competição.

É uma verdade dolorida, porque sendo atraído por competição desde criança, eu estive em muito mais times perdedores do que vencedores e eu odiei cada derrota. Mas o corolário da vitória é a derrota e esse é um risco que se assume toda vez que você decide competir em alguma coisa. Você pode ganhar porque você pode perder. Do contrário, são medalhas de participação.

Seis meses sem basquete competitivo e a coceira começou. Jogar toda quarta como recreação não bastava. Por outro lado, aos 29 anos, trabalhando em tempo integral e com um mestrado em andamento, eu não conseguiria me dedicar a treinos coletivos para jogar campeonatos amadores. Eu precisava de algo sobre o que eu tivesse controle, que fosse individual.

Foi assim que em junho de 2023 eu voltei aos tatames pela primeira vez desde os 16 anos, quando fiz meu primeiro treino de jiu-jitsu. 13 anos depois eu senti a mesma coisa que me atraiu na adolescência: exaustão física, exigência técnica, risco controlado e possibilidade de melhora por esforço individual. Aos 16 eu parei de treinar para mudar de cidade e de estado e entrar na EPCAr, com a promessa de que eu voltaria. A promessa foi postergada, mas não quebrada. Saí do primeiro treino com vontade de vomitar e com mais vontade ainda de treinar outra vez.

O jiu-jitsu é incômodo. É uma luta que acontece quase que integralmente no chão, com os corpos o mais próximos possível, em posições contraintuitivas. A aspereza do kimono queima os dedos; o tatame raspa os joelhos. Cinco minutos de rola, como o momento da luta é chamado no treino, parecem eternos. Você pode achar que fazer força vai resolver tudo, e fazer força vai, realmente, ajudar, desde que a outra pessoa não saiba o que está fazendo. E sempre tem alguém do outro lado e raramente esse outro alguém sabe menos do que você. Então você faz força e sua força recebe uma resposta e você acaba com o braço estendido ou com o pescoço sendo apertado. O jiu-jitsu é um exercício de humildade: aos 29 anos, eu não sabia nada. Para aprender é preciso aceitar que não se sabe nada. Entrar em um tatame como a pessoa que menos sabe é um exercício de humildade ainda maior, porque ali pouco importa de onde você veio ou quem você é. No jiu-jitsu não dá para mentir. O diálogo é franco: você toca a mão do seu adversário em cumprimento, diz Oss, do japonês Osu, em sinal de respeito, e até que o relógio apite ou até que um de vocês dê três tapinhas indicando desistência, tudo o que há é a verdade. E a verdade é que você, ou eu, nesse caso, não sabe nada.

O lado bom de não saber nada é que há muito para se aprender.

E assim eu voltei a treinar. Primeiro, duas vezes por semana — segunda e sexta. Continuei indo aos rachas de quarta, mas estava cada vez mais atraído pelo jiu-jitsu. Do momento em que eu entrava no tatame para treinar até o final do treino, eu não pensava em mais nada. Assim como nos momentos milagrosos da escrita em que o ritmo das palavras me inunda e eu me aparto do mundo para existir apenas no fluxo da cadência das frases, a exigência física e mental do treino me desligava de todo o resto.

Descobri que havia uma academia de lutas perto do meu apartamento em São Paulo e fui até lá para uma aula experimental numa quarta de manhã. No mesmo dia desmarquei minha presença no racha e fui para o treino à noite. Estava treinando segunda, quarta e sexta.

O treino de jiu-jitsu é muito parecido em todo lugar. Começa aquecendo ou com algum exercício específico ou com alguma atividade de esforço aeróbico, disso vai para a posição do dia, repetida dezenas de vezes, e termina com o rola. Existem variações dentro desse modelo, mas a característica marcante do jiu-jitsu é que em praticamente todo treino os alunos efetivamente lutam entre si. Em uma arte marcial de golpes traumáticos como chutes, cotoveladas e socos essa dinâmica não é possível entre praticantes amadores, porque a chance de lesão é enorme e você não quer levar soco na cara numa quarta à noite, tendo que trabalhar no dia seguinte. No jiu-jitsu as lesões acontecem, mas elas podem ser evitadas pelos simples três tapinhas, código universal do: parou. Então, ao longo dos treinos o praticante acumula horas e mais horas de luta. Para o iniciante, são horas e horas apanhando, cumprimentando o adversário e começando outra vez.

Três vezes por semana eu ia para o tatame, apanhava mais do que batia e começava de novo. Fui aprendendo, aos poucos, novos detalhes, novos movimentos, novos ajustes. Aprendendo a me defender melhor, a atacar melhor, a sobreviver. O cansaço não sumiu, mas diminuiu. Eu aguentava mais tempo, resistia, procurava por alternativas. Os rolas com os graduados continuavam difíceis, mas eu entendia melhor a dinâmica mesmo na derrota.

Na medida em que senti minha evolução, aumentei a frequência dos treinos, que passaram a ser de segunda a sexta, para desespero do meu corpo. Meu joelho doía, meus dedos estavam com as pontas queimadas, minha orelha ficou inchada, meus pés tinham ralados por toda parte. Porém, depois de um dia de trabalho e mais horas dedicadas à pesquisa acadêmica, entrar no tatame e desligar minha conexão com o mundo era recompensa mais do que suficiente.

No jiu-jitsu, existem dois tipos de praticantes. Os hobbystas, que treinam por hobby, sem interesse em competir, e os competidores. Aos 29 anos é certo que eu não serei um profissional do jiu-jitsu, de maneira alguma. É possível, desde que eu continue treinando, pois é um compromisso só meu, que um dia eu receba a faixa-preta. Mas isso nunca me tornará um profissional. Essa realidade, no entanto, não afastou a minha vontade de competir.

Com dois ou três meses de treino, lutei no Pan-Americano da CBJJE. A sensação é esquisita: no basquete, você é parte de um time; no jiu-jitsu, é só você quem pisa no tatame. Do outro lado há um adversário, cujo objetivo é o mesmo que o seu: vencer a luta, o que significa, em português simples, te encher de porrada. Entrei no ginásio, cumprimentei o árbitro, cumprimentei o adversário, coloquei o protetor bucal e comecei a lutar.

Venci a minha primeira luta em competição por 3x0, com uma passagem de guarda. Terminei a luta muito mais exausto do que em qualquer treino, o cansaço do combate exacerbado pela adrenalina. Fui para a área de aquecimento e minha respiração estava irregular, meu peito acelerado. Cinco minutos depois me chamaram para a próxima luta. Eu mal conseguia pensar. Após o cumprimento, derrubei o adversário, fazendo 2x0, mas fui logo raspado — o que significa ter a posição invertida, quando quem está embaixo consegue ficar por cima — e ele dominou as minhas costas quando tentei rolar para longe, me estrangulando. Meu adversário seria vice-campeão aquele dia.

Minha primeira derrota.

Saí cansado, com a cabeça enuviada, e irritado por perder. Mas era só o meu primeiro campeonato.

Voltei para os treinos. Dia após dia após dia.

O segundo campeonato: Nacional da CBJJE. Resolvi lutar tanto sem kimono quanto com, apesar de treinar, majoritariamente de kimono. A competição sem kimono foi de manhã. Cheguei cedo no ginásio. Aqueci na área específica, ouvi música, comi snickers, bati o peso da categoria. Quando meu nome foi chamado, eu estava tranquilo.

Fomos para o tatame, nos cumprimentamos e o árbitro disse Combate. Após alguns segundos em pé, meu adversário avançou para a minha perna para tentar me derrubar e eu prendi seu pescoço em uma guilhotina. Ele ergueu a minha perna esquerda e eu mantive sua cabeça sob meu braço. Senti que a posição era favorável para mim e que seria possível estrangulá-lo, então deixei que ele me derrubasse para ajustar a guilhotina no chão. Porém, uma vez no chão, ele conseguiu se desvincilhar do meu golpe e sua cabeça escapou. Fiquei por baixo, com ele dentro da guarda. 2x0, a vantagem era dele. Passamos 4 dos 5 minutos da luta ali. Ele tentava abrir e passar a minha guarda e eu tentava raspá-lo ou finalizá-lo. Em certo momento, usei minha mão esquerda para segurar seu pulso direito e, levantando meu tronco em sua direção, encaixei uma chave de braço chamada kimura, em que a minha mão direita passou por cima do ombro direito dele, entrando por baixo da axila para encontrar a minha outra mão, que segurava o seu pulso. Com a mão esquerda no pulso direito do adversário e com a minha mão direita sobre meu pulso, forcei seu braço na minha direção para obrigá-lo a bater diante da pressão em seu ombro. Senti o ajuste, sabia que a posição era boa. Pensei: ele não vai aguentar. Foi meu segundo erro de cálculo. Quando fiz força com a mão esquerda, o pulso dele escapou e seu braço estendeu, livre. Recebi uma vantagem, que vale menos que um ponto. Eu continuava perdendo. A luta seguiu no chão até que ele abriu a minha guarda e nós dois ficamos de pé. Olhei para o relógio e só tínhamos alguns segundos. Eu precisava de uma queda para empatar. Avancei para as suas pernas, ele pulou para trás e saiu da área de luta. Outra vantagem para mim. Assim que retornamos ao meio, o relógio zerou.

2x0.

Minha segunda derrota.

Recebi a medalha de bronze, porque lutamos já na semi-final. Ele acabou sendo campeão.

Triste outra vez, tentei me animar pensando que eu havia treinado sem kimono menos do que meia dúzia de vezes. A tarde seria diferente.

Não foi. Puxei o adversário para a guarda imediatamente, o que não vale ponto, mas me deixou em uma vantagem estratégica. Consegui raspá-lo, invertendo a posição e ficando por cima, 2x0 para mim. Ao tentar passar sua guarda e dominá-lo em uma posição lateral, ele conseguiu se levantar e pegar as minhas costas, mas sem colocar os ganchos, ou seja, colocar os pés na minha virilha, o que contabilizaria 4 pontos para ele. Como não houve estabilização nas costas e eu consegui me defender, levantando, ele recebeu 2 pontos da raspagem e a luta ficou empatada em 2x2. Com ele de costas no chão e eu de pé, forcei uma passagem na pressão, caindo com o ombro sobre seu peito, e ele utilizou meu peso para me desquilibrar e se levantar, vindo para cima de mim e recebendo mais 2 pontos. 4x2. A luta terminou assim.

Agora eu estava frustrado. Fiz uma luta estúpida, tomei decisões ruins e perdi. Saí do tatame irritado mais uma vez.

Na segunda-feira, eu estava treinando de novo. Em novembro haveria Mundial da CBJJE e o professor da academia estava me incentivando a lutar. Duas semanas antes do mundial, em um treino de sábado que eu quase nunca participava, fui fazer um rola com o professor e, numa teimosia, tentei segurar a kimura que estava sofrendo, esticando o braço como meu adversário fez na luta sem kimono. Porém, ao contrário do que aconteceu na minha luta, o professor tinha a pegada firme no meu braço, aproveitando o kimono para garantir o controle, e meu braço esticou no mesmo sentido em que ele fazia força. Meu cotovelo hiperestendeu e estralou três vezes. O professor se assustou. Eu senti a dor aguda subir pelo meu braço. O meu cotovelo inchou e o movimento era mínimo. Gelo, anti-inflamatório, repouso. Fiquei com o braço inutilizado durante a semana seguinte. Na outra, conseguia fazer um pouco de força, mas qualquer extensão ou contração mais amplas me enchiam de dor. Foi mais ou menos um mês até eu conseguir rolar outra vez. O mundial passou e eu não lutei.

Voltei para os treinos em dezembro, a dor havia ido embora e eu me sentia bem. Em janeiro haveria o Mundial sem kimono e passei a focar nessa competição, com a certeza de que, dessa vez, o bom resultado viria.

Não tinha como não vir.

Eu estava fazendo tudo certo.

Eu estava treinando. Eu estava indo na academia. Eu estava me preparando.

Decidi me inscrever na categoria de peso acima da minha, porque, na data da inscrição, não havia ninguém no meu peso (até 92kg). Fiz a inscrição na super-pesado (até 98kg) e comecei a ganhar peso. Lutar na categoria de cima me assustou, porém eu continuava confiante.

Quando vi quem estava na categoria, cometi o erro de procurar as pessoas nas redes sociais. Um deles me fez ficar ansioso: parecia ser maior e mais forte do que eu, um combo com o qual eu não estou acostumado na academia. Ser o cara mais alto e mais pesado geralmente tem seus benefícios, mas o malefício é que eu quase nunca treinava com alguém que fosse capaz de me sobrepujar unicamente pela força. Pensei: tomara que eu não caia com ele.

Quando saiu a chave, a minha primeira luta, já na semi-final, era com ele. Isso me perturbou e tentei afastar o pensamento, lembrando que eu tinha treinado e tinha me preparado. O bom resultado viria. Não tinha como não vir.

O medo de perder, porém, permaneceu firme no fundo da minha mente.

28 de janeiro de 2024, às 12h45, no Ginásio do Ibirapuera. Chamaram o meu nome e o nome do meu adversário. Meu estômago me incomodava. A garganta seca. Não aqueci. Fui para o tatame e nos cumprimentamos.

Então, em 1 minuto e 49 segundos, estava tudo acabado. A luta havia sido encerrada.

Eu perdi.

Eu perdi. Em 1 minuto e 49 segundos, com o pescoço dolorido e um zumbido no ouvido direito, eu perdi.

Volto ao texto que não escrevi.

Michael Jordan tinha a mentalidade tóxica do campeão. Kobe Bryant tinha a mentalidade tóxica do campeão. Federer. Phelps. Schumacher. Serena Williams. Ledecky. Todos perseguiam — ou perseguem — a vitória de maneira obsessiva. Mas não é o termo campeão que importa na frase, apesar de ser o termo de destaque. Porque não são só os campeões que têm essa mentalidade: eles são apenas os que se destacam. Pois é mais do que certo que nos times vencidos pelos Bulls do Jordan ou pelos Lakers do Kobe e que nos tenistas derrotados pelo Federal e que nos nadadores derrotados pelo Phelps etc, havia muitos que compartilhavam da mesma mentalidade tóxica. Da mesma obsessão. Da mesma persguição insana, às vezes às custas de todo o resto, pela vitória.

Só que o corolário da vitória é a derrota: para alguém vencer, alguém tem que perder.

Toda história de vencedores carrega o subtexto dos perdedores.

O texto que eu não escrevi era sobre vencedores: o texto que eu escrevi também, e vice-versa.

Atletas profissionais dedicam a vida ao esporte e às competições, pela chance de vencer. A verdade, porém, é que a ampla maioria deles nunca vencerá no mais alto nível. Eles competirão, mas não vencerão, porque só há espaço para que um vença. É isso o que torna a competição atrativa, perigosa e excitante. No fim, os deuses lançam a moeda.

Começar algo novo é sempre muito difícil, porque nós sempre nos iludimos pela ideia de que podemos ser especiais, que somos talentosos, que há algo de inato em nós apenas esperando a oportunidade de florescer. Quase nunca há. Quase nunca somos. Quantas crianças foram convecidas de que eram prodígias e, na verdade, eram ordinárias? Quantos de nós não recusamos a chance de tentar — e, via de consequência, a chance de falhar — pelo simples medo de não termos sucesso? É mais fácil dizermos (para nós mesmos) que não queríamos fazer, do que fazer e falhar. Comparision is the thief of joy: olhamos sempre para o outro, no topo, para a referência, e essa referência é desastrosa. Nunca somos tão bons. Ou, pior: às vezes somos mais ou menos bons, com algum talento, e somos esmagados pelas nossas expectativas.

Quando treinei jiu-jitsu pela primeira vez aos 16 anos, o faixa-preta me elogiou e disse que eu levava jeito para a coisa. Que eu era duro. Ele me incentivava nos treinos, me fazia puxar o gás.

Durante os 13 anos que fiquei sem treinar, acreditei nisso como palavras quase místicas: eu levava jeito, só não pude continuar treinando. É a desculpa perfeita para nunca voltar. E quando eu voltei eu até levava jeito, eu até aguentava o tranco, eu até era duro. Mas eu não era bom: eu era mais um simples faixa branca tentando sobreviver. E ser mais um é uma dura lição de humildade para quem vive de que, na próxima esquina, haverá uma revelação.

Quando perdi a última luta no mundial sem kimono, a lição bateu forte. Eu não estava apenas frustrado: eu estava triste e deprimido. Fui preenchido por uma tristeza singular: a de enxergar com clareza a dissociação entre a realidade concreta e a realidade projetada por mim. Tive que encarar os fatos: é possível que não dê certo, mesmo que você treine. Mesmo que você se dedique. Mesmo que você tenha a mentalidade tóxica, a parte do campeão não está nas variáveis controláveis. Porque do outro lado tem outra pessoa e ela também quer vencer. O corolário da vitória é a derrota.

Logo após a luta, pensei se deveria continuar treinando. Senti vergonha por perder, e senti vergonha por sentir vergonha. Sabia que era uma sentimento infundado, mas duro de afastar. Que pesava sobre mim. Pensei:

Eu não preciso disso.

E é verdade. Eu não preciso. Mas não precisar é, também, uma libertação.

Quando eu me sento para escrever, eu quero ser lido. Quando eu escrevo e sou lido, eu quero que gostem do que eu escrevo, é inevitável para a minha vaidade. Eu escrevo como uma extensão de mim mesmo e não posso negar o medo que sinto quando minhas palavras são lidas, porque é um acesso direto a mim, e o ato interpretativo da leitura me expõe, me fragiliza. Eu me coloco em jogo.

Mas não é por isso que eu escrevo. É a consequência, o que vem depois. O que vem antes é o ritmo, é a chance rara de encontrar o flow das palavras que me desliga de tudo o que está ao meu redor, de encontrar o sentido exato para um pensamento solto, de direcionar as frases para a conclusão necessária, para dar à ficção a chance de se concretizar na escrita. Eu quero ser lido, mas só por que eu quero escrever.

Eu não preciso disso, mas é quem eu sou. Então eu escrevo.

Quando eu ia para os treinos de basquete, é claro que eu queria melhorar meu jogo, vencer, ser campeão com o meu time. Mas isso também vinha depois: era no dia a dia, a cada treino, que a alegria — e, às vezes, a frustração — se materializava. Era no progresso quase imperceptível. Era na repetição. Era na mecânica. Era no processo.

Eu não preciso disso, mas é, também, quem eu sou. Então eu jogo.

Eu não preciso do jiu-jitsu. Mas quando eu entro no tatame, tudo fica em silêncio. Na segunda-feira depois da derrota no mundial, eu fui para o treino. E tudo ficou em silêncio. Eu continuava triste, mas eu pensava com clareza e a própria tristeza era mais clara, mais simples de entender. E na terça eu fui para o treino. E na quarta eu fui para o treino.

E continuarei indo, enquanto eu encontrar o silêncio. Enquanto eu encontrar a próxima palavra. Enquanto eu encontrar sentido.

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