Eu acho que devo uma explicação para vocês

Quando a própria vida vira produto, o público vira consumidor e o produtor, consumido

Gabriel Schincariol Cavalcante

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Este texto foi publicado originalmente na newsletter Eu posso estar errado

“Eu acho que devo uma explicação para vocês”, assim começa Dora Figueiredo o primeiro vídeo sobre os problemas do seu apartamento (alugado). Devo uma explicação é uma expressão que diz bastante coisa sobre a relação da Dora com o público, mas, especialmente, que diz bastante coisa sobre a relação dos produtores de conteúdo com os destinatários de suas produções.

War and Peas

Para resumir, o que a Dora conta na sequência de vídeos é que o sonho, que começou em plena pandemia, revelou-se pesadelo: em 2020 ela decidiu morar sozinha e em parceria com a Doma Arquitetura reformou um apartamento inteiro, documentando tudo, é claro, nas redes sociais. Corta para 2023: o apartamento não era dela; era alugado. O projeto aparentemente era cheio de problemas, a parceria (permuta) foi uma catástrofe e o proprietário do apartamento não parece ter concordado em indenizar a Dora pelas benfeitorias (pelo amor de Deus, falem com um advogado antes de fazer coisas potencialmente estupidas). No fim, a Dora vai ter que sair do apartamento porque ficou caro demais viver lá.

Se você não está por dentro da história, recomendo o vídeo do Luide sobre o assunto.

Enquanto eu elaborava esse texto, outra coisa aconteceu que se relaciona diretamente com o que eu quero dizer: a cantora Luísa Sonza, que depois de algumas semanas namorando o Chicoin fez uma música chamada Chico para o namorado, a música viralizou, dezenas de vídeos dela cantando a música para um Chicoin cada vez mais desgostoso popularam a internet, foi até o programa Mais você, com ninguém mais, ninguém menos do que Ana Maria Braga, e decidiu ler uma carta aberta revelando que o relacionamento dos dois tinha acabado porque o Chico Moedas tinha lhe traído no banheiro de um bar. Na carta, ela decide revelar que a mãe e as tias também foram cornas durante a vida, para não perder a viagem.

Pois então. Eu não quero falar diretamente sobre a Dora e os vídeos da reforma ou da Sonza e da cornitude autoexposta. Eu quero falar sobre o fenômeno que esses dois casos elucidam tão bem: a dinâmica de transformar a própria vida em conteúdo consumível, com a inevitável consequência de transformar o público em uma massa de consumidores — cada vez mais exigentes e rigorosos com os produtos que adquirem por meio de likes, compartilhamentos, comentários. O produto, claro, é o próprio influencer.

Vida como serviço

Em um texto anterior, A morte do espaço na contemporaneidade, eu já discorri sobre como eu vejo o estado das relações contemporâneas mediadas pelas redes sociais e como estamos perto demais, o tempo inteiro, para termos alguma noção de contexto. O que eu quero falar agora dialoga, em alguma medida, com esse outro texto, mas meu interesse é em um ponto específico: como as nossas identidades — e nossas intimidades e privacidades — foram cooptadas pela lógica do capital, transformando cada passo que nós damos em uma commodity produzida sob medida para o alimentar o algoritmo.

Em The condition of Postmodernity, David Harvey discorre sobre o que ele chama de compressões do espaço-tempo ocasionadas pelos movimentos capitalistas, que resultam na condição pós-moderna. Houve, nas últimas décadas, uma mudança significativa do consumo de bens para o consumo de serviços — entretenimento, espetáculos, streaming, a vida do outro.

Passamos a consumir serviços sob demanda, somos servidos pela internet com o que mais nos interessa — ou com o que nos convenceram nos interessar. As redes sociais perguntam: podemos utilizar seus dados para direcionar publicidade e conteúdo do seu interesse? Se você diz que não, eles ameaçam: continuaremos direcionando publicidade e conteúdo que podem ser menos valiosas para você. De um jeito ou de outro, somos bombardeados com conteúdo o tempo inteiro.

Os bens, produzidos a partir da força de trabalho manual, são substituídos pelos bens em que nossas vidas são, ao mesmo tempo, a força de trabalho e o produto. Nossas imagens viram a commodity da vez.

Uma das facetas mais cruéis desse estado de coisas é que nos vendem essa realidade não como uma imposição do sempre revolucionário capital, mas como uma forma de tomarmos a vida nas nossas mãos. Como se viver desse jeito fosse um exercício de agência. O imbecil do Monark dizendo que “eu produzo vídeos, então eu sou dono da minha força de trabalho” é um bom exemplo disso. Consumimos, nesse anseio pela vida do outro, pelo certificável, pelo íntimo, conteúdos sob medida de gente que também acredita estar um passo a frente, para além da estrutura, rompendo com as regras do jogo.

No entanto, como diz Harvey, “o capital é um processo e não uma coisa. É um processo de reprodução da vida social por meio da produção de commodities, no qual todos nós dentro do mundo capitalista estamos profundamente implicados”.

Não estamos para além da estrutura: estamos no olho do furacão. Ao mesmo tempo em que os movimentos de reconhecimento das identidades como elementos centrais de nossas vidas — notadamente para as identidades de minorias historicamente oprimidas — são louváveis, relevantes e indispensáveis para um movimento social realmente progressista, parte considerável dos beneficiários desses movimentos parecem incapazes (ou desinteressados) em perceber que a exploração da própria identidade não pode ser dissociada das condições materiais em que essa exploração acontece.

Consumidor-espectador, produto-produtor

Voltemos à Dora. A Dora cresceu muito na internet com uma importante mensagem bodypositive. Um dos temas de A morte do espaço na contemporaneidade é, justamente, a pressão estética absurda que influencers fitness exercem sobre nós. Porém, a partir dessa mensagem a Dora passou a capitalizar sobre a sua imagem e se tornou ela própria uma influencer, opinando sobre tudo, falando sobre tudo, expondo-se o tempo inteiro. Não há distinção entre CNPJ e CPF na internet.

Quando o caso da Doma Arquitetura e o apartamento alugado estourou, as pessoas não puderam deixar de rir. Era uma situação bastante ridícula, que parte dessas relações precárias da contemporaneidade baseadas na troca de favores e no uso da própria vida como barganha — a famosa permuta: a Dora divulgava a Doma, que fazia o projeto em troca. Tudo isso seria evitado se a Dora: i. buscasse melhor assessoria jurídica; ii. não expusesse cada detalhe da sua vida privada como parte da sua marca.

Mas como ela poderia deixar de fazer isso? É disso que ela vive. É isso que ela vende. Ela é refém do seu próprio sucesso. Sua vida privada é o produto que ela oferta ao público.

Quando ela diz Devo uma explicação, ela não está falando em sentido figurado. Ela sente que, sim, deve uma explicação, como um funcionário deve ao patrão, pelo dever de subordinação. Como um filho deve ao pai. Como um subalterno deve ao seu capataz. Um dever jurídico. Porque é isso que o jogo de influência pela própria imagem no capitalismo tardio criou: uma massa de consumidores da vida alheia, ansiosos por cada migalha de acesso, e uma massa de influencers que se sente no controle das próprias vidas, mas que, na verdade, estão amarrados numa relação problemática e parasitária.

Acham que estão rompendo com a estrutura, mas estão reproduzindo com excelência a ideologia do capital.

Dentro desse mesmo esquema está a Luísa Sonza, que transformou seu namoro de semanas em uma música viral e o término em carta aberta num programa da Rede Globo. Todo e qualquer aspecto da vida privada da artista é moldado para virar uma comodity que o público consumirá desenfreadamente — os fãs, com destrutiva alegria; os haters com nocivo desdém. De toda forma, o nome dela estará no top charts do Spotify e nos Trending Topics do Twitter.

A embalagem dessa autoexposição calculada foi a de uma espécie de feminismo branco liberal:

“Hoje vocês não vencem. Hoje, eu quebro o ciclo pela minha mãe, por minhas tias, por todas as mulheres que eu vi a minha vida inteira sendo traídas e não tinha muitas vezes nem pra onde ir, acabando por ter que ficar com um traidor dentro de casa. Hoje, eu me escolho, mesmo que me doa, mesmo que por vezes eu não queira, mesmo ainda te amando, hoje eu me protejo e não vou te proteger. Mesmo que eu queira, porque você naquela noite naquele bar não me protegeu, mesmo que eu quisesse. Hoje eu te dou um adeus, por mim e por todas nós. E antes de ir, eu quero te responder que escolher não estar mais com você não é viver o amargor ao invés do amor, como você me disse. Eu vou viver o amor, só não vai ser com você”.

Não tenho porque duvidar da honestidade dessas palavras. Talvez ela sinta, sim, que está fazendo um bem às mulheres de maneira geral. Só é um pouco triste, porque esse “por todas nós” é um evidente produto de marketing. É o encasulamento das questões da identidade para a promoção pessoal. Para aparecer mais. Para vender mais.

A própria Dora lançou um video recente no TikTok, modelo perfeito para o mercado de consumo de alta circulação, em que nada dura mais do que poucos minutos, falando sobre as razões pelas quais ela não estava muito ativa nas redes sociais (a ironia de fazer isso por meio de um vídeo nas redes sociais não me escapa). Ela parece fazer um relato sincero sobre a pressão estética que tem sentido e como isso tem impactado a sua saúde mental. Até que, ao chegarmos no fim do vídeo, descobrimos que é uma autopublicidade não sinalizada, quando ela nos conta que está fazendo parte da Rede de Saúde Mental do TikTok.

A rede social capitaliza sobre a imagem da influencer, a influencer capitaliza sobre o seu próprio sofrimento, o público satisfaz seu gozo diante da autofagia pública.

É a lógica do capital cooptando toda e qualquer pauta, em seu infinito potencial autodestrutivo:

Capitalismo é o que sobra quando as crenças colapsam ao nível da elaboração ritual e simbólica, e tudo o que resta é o consumidor-espectador, cambaleando trôpego entre ruínas e relíquias.

Ainda assim, essa guinada para a estética, do engajamento para o voyeurismo, é tida como uma das virtudes do realismo capitalista — Mark Fisher em realismo capitalista, p. 13.

Parecemos presos dentro dessa lógica desagradável. Ao mesmo tempo em que somos capazes de perceber as engrenagens do sistema capitalista girando — mais, somos capazes de sentir o seu peso sobre nós — , não conseguimos evitar o ímpeto de alimentar essas engrenagens. Também somos convidados a tomar parte nessa dança social enferma, publicando nossas vidas, ofertando ao outro algo de íntimo em troca de validação por likes, por comentários. Cumprimos nosso papel consumindo o que é produzido, reagindo irascivelmente quando influencers fazem papel de bobo.

A grande dificuldade reside no fato de que nada disso é uma questão individual. Não é A Dora ou A Luísa. Elas são exemplos de um problema social amplo, dentro do qual nós estamos inseridos, porque a ilusão de que a mera exposição de nossas vidas, que propagandas bonitas na televisão louvando corpos diferentes, famílias que não são heteronormativas, mulheres, negros, pardos, amarelos, que grandes marcas fazendo ações com minorias vão superar os problemas sistêmicos de opressão não passa disso: uma ilusão.

Quando um influencer usa sua identidade para fazer propaganda para um banco ou para uma marca com histórico negativo, ele não está rompendo com a estrutura. Ele não está falando por todos nós. Ele está falando por si, transformando-se na sua própria ferramenta de trabalho, vendendo sua imagem como produto, alienando-se de si mesmo. Um apêndice da sua própria existência.

Não adianta só criticar o indivíduo: é uma exigência da vida contemporânea e o influencer também tem conta para pagar. É essa a forma como ele trabalha. O fordismo está morto. O capitalismo não.

Mas o preço que pagamos por isso é cada vez mais alto. Os problemas de saúde mental não param de aumentar, com uma constante individualização que cresce até mesmo nos slogans que parecem mais empáticos: vá fazer terapia! Tudo sempre nas costas do indivíduo, sozinho, apartado do todo. Vá fazer terapia, poste nas redes sociais que fez terapia, mostre como você está melhor, compartilhe seu progresso, convença-se de que esse simbolismo é a sua realidade, fique feliz.

Fisher apresentou, em realismo capitalista, argumentos sobre a necessidade de se pensar a nossa saúde mental em paralelo com as condições sociais em que vivemos:

É óbvio que toda doença mental tem uma instanciação neurológica, mas isso não diz nada sobre a sua causa. Se é verdade que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda resta a ser explicado são as razões pelas quais indivíduos em específico apresentam tais níveis, o que requereria uma explicação político-social — p. 67.

Dever uma explicação para vocês é transformar toda a vida em uma transação. Business. Simples negócios. Judicializar afetos. O que há de mais íntimo e privado em nós — nossos relacionamentos, nossos medos, nossas paixões, nossos segredos — expostos em uma prataleira de mercado, cuja moeda não é diretamente o dinheiro, mas o engajamento. O lucro não depende só do dinheiro, o lucro depende do valor.

E estamos convecidos de que nossos valores serão medidos na lógica do consumo. Mas não somos produtos, nem commodities. Pelo menos não deveríamos ser.

Somos gente. Não devemos explicação sobre isso.

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