CÓDIGO DE ENDEREÇAMENTO POSTAL

Gabriel Schincariol Cavalcante
impublicável.
Published in
8 min readJan 26, 2023

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Walt Grace, desperately hating his old place, dreamed to discover a new space…

Maria Shkliaeva

Prontos para recomeçar. Não, prontos para começar, porque sentiam que não havia começo anterior para eles — haviam sido começados, contra suas vontades, impostos, subjugados. Prontos para começar, enquanto agentes do verbo.

O que tinham para esse começo cabia em duas malas grandes, não mais do que isso, as reservas financeiras no banco e, no campo emocional, medo, coragem, esperança. E tinham Walt Grace, o salsichinha preto que resgataram da vida passada.

No airbnb em que estavam, alugado por 15 dias por um preço considerável, o único que aceitava animal de estimação na região, as malas estavam abertas ao lado da cama, não desfeitas, símbolos da efemeridade. Estavam agora no trabalho de pesquisa. Entraram em todos os sites conhecidos, procuraram no google, enviaram mensagem para os corretores que conseguiram achar na internet. Eram muitas opções, mas se consideramos apenas as opções realmente possíveis e se excluirmos aquelas que, dentro das possíveis, eram insalubres, não eram tantas opções assim. O realmente possível é aquilo que engloba o valor e a localização e o fato de aceitar animal de estimação. O salubre, dentro do possível, é aquilo que engloba habitações com condições mínimas para a digna existência humana.

Começaram a marcar visitas. Deixavam claro, de antemão, que eram dois homens e um cachorro. Deixavam claro o teto do aluguel. Deixavam claro as localizações possíveis — este era um ponto em que havia margem para flexibilização, mas não de maneira excessiva. Invariavelmente ficavam animados ao encontrar um anúncio bom: esse é a nossa cara, o Walt Grace ia adorar, olha só, tem uma pracinha para cachorros perto desse endereço, a varanda é legal, o quarto é grande, boa cozinha, tem área de serviço.

Iam se entusiasmando, fantasiando, planejando o começo dessa nova vida.

Essa nova vida era, para eles, a única vida, porque o que viveram até então veio como um prefácio imposto. Coletaram os espólios desse prefácio em duas malas grandes e se despediram, na esperança de que a distância entre o presente e o passado, cultivada em um lugar novo, em que a história deles ainda estava por ser escrita, propiciaria o espaço necessário para que eles se tornassem exatamente quem eles eram.

É claro que nunca é tão fácil assim, e eles tinham isso em mente, ainda que no fundo da mente, naquele fundo em que nós não vamos muitas vezes, que evitamos visitar, que mantemos em segundo plano, mas que, cedo ou tarde, impõe-se ante todos os outros pensamentos, geralmente nos instantes imediatamente anteriores ao sono, e acabam por nos manter acordados a noite toda, digerindo aqueles pensamentos empoeirados que nos fazem questionar: e se?

É claro que nunca é tão fácil assim, porque a distância entre o presente e o passado, ainda que aliada a uma distância física decorrente da mudança, não é insignificante, mas é uma distância percorrível pela memória, cujas pernas são muito mais resilientes do que nós costumamos crer. Podemos partir e deixar para trás o que nos aparta de quem desejamos ser, mas carregamos conosco tudo aquilo que fomos até então. E é essa a bagagem que pesa muito mais do que qualquer mala cheia de objetos. E é essa bagagem que precisamos, cedo ou tarde, abrir para investigar seu conteúdo, para conferir o que é real e o que não é real, para garantir que não estamos deixando escondido, junto com tudo aquilo que rejeitamos, algo que nos é fundamental, ainda que seja muito difícil distinguir uma coisa da outra.

Eles tinham isso em mente, e invariavelmente eles passarão noites acordados pensando nisso, mas não agora.

Agora eles estão em movimento e o movimento é uma arma poderosa. Iriam começar, disso tinham certeza. Iriam começar essa vida só deles.

Começaram as visitas. O primeiro corretor mostrou um apartamento agradável, arejado, bem localizado, dentro da faixa de preço que eles tinham condições de pagar. No meio da visita, disse: então, só tem uma coisinha.

Os dois sentiram a apreensão crescer.

Então, é que eu falei com a proprietária, pra confirmar, e ela me disse que não quer animal no apartamento, porque estraga o taco.

Estraga o taco?

É o que ela disse.

Mas nós perguntamos especificamente sobre isso.

Eu sei, mas ela me falou só depois.

Quando?

Ontem.

E por que você não nos avisou ontem?

Achei que vocês poderiam ter interesse mesmo assim, talvez deixar o cachorro com outra pessoa.

O cachorro, Walt Grace, estava com eles na visita. Os dois olharam para a carinha de Walt Grace, sentado entre eles e o corretor. Um deles pegou o cachorro no colo.

Para não estragar o taco, disse. Foram embora.

O segundo apartamento era horrível e o armário embutido estava mofado e sem três das quatro portas. Para o terceiro, a corretora apareceu mas esqueceu as chaves.

De volta ao airbnb, sentiam-se cansados do dia. Sabiam que não seria no primeiro dia de procura, mas a conversa com o corretor sobre o cachorro deixou ambos irritados.

Vamos achar graça disso depois, um deles disse.

Agora eu não tô achando graça nenhuma, o outro respondeu.

Eu sei, você tem o humor de uma pedra.

Os dois riram.

Foram para a sacada do apartamento temporariamente alugado, sentaram-se nas cadeiras de praia e olharam para o céu noturno daquela cidade. Ficaram em silêncio por alguns minutos.

Amanhã vai ser melhor, um deles disse, interrompendo o silêncio.

Espero que sim.

Não é possível que em uma cidade desse tamanho, sob um céu desse tamanho, não haja um lugar para nós dois.

Nós três, o outro respondeu, acariciando a cabeça de Walt Grace, que estava deitado entre as duas cadeiras.

Nós três, é claro, não é possível que não haja um lugar para nós três.

Não é, mesmo.

E eles tinham razão, porque lugar sempre há, mas entre existir um lugar e achar este lugar existe uma grande diferença. Até por que achar, na maioria dos casos, não é o verbo correto.

O verbo correto é criar.

… Cause when you’re done with this world…

Pela manhã, receberam a dona do apartamento, que avisou que iria lá todo dia cedo para cuidar das plantas. Eles se ofereceram para ajudar, mas ela disse que não precisava, que ela gostava de se ocupar com as plantinhas. Era uma professora de artes aposentada e viúva. As duas filhas, adultas, moravam em outro estado. Contou que ela e o marido criaram as meninas naquele apartamento, mas que depois que ele morreu e elas saíram de casa, ficar lá sozinha trazia mais lembranças do vazio do que do preenchimento, e então ela decidiu se mudar para um apartamento menor que eles compraram para que as filhas pudessem usar, o que acabou nunca acontecendo.

Depois de cuidar das plantas, ela aceitou o convite dos dois hóspedes para tomar um café. Walt Grace ficou no seu pé, encarando-lhe muito dedicadamente. Você quer um biscoitinho, né?, perguntou para o cachorro, que colou a língua de fora. Posso dar um biscoitinho para ele?, perguntou para os dois. Ah, um só não tem problema, um deles respondeu. Ela pegou Walt Grace no colo e deu o biscoitinho em sua boca. Os três riram juntos quando Walt Grace pegou o biscoito com todo o cuidado do mundo para não morder o dedo da mulher.

O começo do dia foi bom, mas bons presságios às vezes se encerram em si mesmos. As visitas foram todas mal-sucedidas. Na última delas, o proprietário do apartamento que eles visitavam perguntou se os dois eram amigos.

Não, somos casados, um deles respondeu.

Ah, é?

Sim.

Entendi, achei que eram só amigos.

Não, não.

O proprietário ficou em silêncio. Walt Grace observava a conversa do chão.

Não que eu tenha nada contra, né, o proprietário disse, mas o condomínio já teve problema.

Problema com o quê?

Você sabe, quer dizer.

Walt Grace ficou de pé.

Não sei, não, problema com o quê?

Ah, com gente assim.

Gente assim? Que gente assim?

Calma, o outro disse para o marido.

Não, não, que gente assim?

Walt Grace estava agitado.

Gente assim, diferente.

Viado? É isso? Com viado?

Você que tá falando.

Vai tomar no seu cu, ele finalmente explodiu. Walt Grace rosnou e o outro homem pegou o cachorro do chão.

Viu? Vocês são assim, temperamentais, não pode falar mais nada.

Vamos, vamos embora. Walt Grace continuava rosnando.

Se no dia anterior tinham chegado em casa cansados, mas esperançosos pelo dia seguinte, dessa vez chegaram com raiva. Pesados. Um céu tão grande, sobre uma cidade tão grande, e o passado dá um jeito de te encontrar. As mesmas coisas acontecendo, não importa aonde você vá. As mesmas pessoas, com rostos e nomes diferentes. Será que é possível recomeçar?

Será que é possível começar?

Ou estamos todos condenados a entrar sempre in media res, descontextualizados, lutando para entender onde estamos, qual nosso espaço, quem somos num espetáculo que foi definido de antemão, sem que nos consultassem sobre nada?

O céu nessa noite continuava enorme, mas esse tamanho não era acolhedor. Era da enormidade da tristeza dolorida que sentiam. Walt Grace não quis comer quando chegaram.

Nos dias que se passaram, a manhã era boa, conversando com a dona do apartamento, mas ao término das visitas os dois estavam sempre esgotados.

Não é possível que não haja lugar para nós, um deles falou outra vez.

Se há, está bem escondido, o outro respondeu.

Walt Grace, você que é cachorro, não consegue farejar para onde devemos ir?

Riram da piada. Walt Grace levantou a cabeça ao ouvir o próprio nome, e depois se aconchegou outra vez em cima das próprias patas.

Achar às vezes não é o verbo. O verbo às vezes é criar.

Para começar, é preciso criar. O começo de uma história é o ponto inicial de sua criação.

Quando esse mundo acabou para você, o próximo é por sua conta.

E quando foram se deitar, um pensamento que até então não lhes tinha ocorrido veio à cabeça dos dois. Quando foram se deitar, perceberam que ali, naquele espaço, eles estavam começando a construir uma vida. Que ali, naquele espaço, estavam começando a construir um mundo só deles.

Que ali, naquela sacada, sentados nas cadeiras de praia, estavam encarando o céu que os abrigava.

Quando foram se deitar, perceberam que às vezes a resposta está mesmo bem na nossa cara.

O pensamento compartilhado aconteceu individualmente para cada um deles. Quando se levantaram, mais cedo do que o planejado, porque não conseguiram dormir direito, constataram que pensaram na mesma coisa. Abraçaram-se, porque sentiram que aquela sintonia era testemunho de algo maior.

Mas e se?

Podemos tentar, não custa nada.

Esperaram ansiosamente até a dona do apartamento tocar a campainha. Assim que ela chegasse, eles fariam a proposta. Se ela não aceitar, eles estão certos de que criarão outra solução. O lar deles dois, junto com Walt Grace, já estava construído.

… You know the next is up to you.

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