CINCO ANOS (e um dia)

Gabriel Schincariol Cavalcante
5 min readMay 14, 2021

Muitas coisas aconteceram há cinco mil anos. Muitas coisas acontecem todos os dias. A maior parte dessas coisas não nos diz respeito, e sobre ela nós nada sabemos e jamais saberemos. Agora, nesse instante, acontecem muitas coisas. Alguém nasceu. Alguém morreu. Um prédio caiu. Uma casa foi erguida. Para quem nasceu, para quem morreu, para quem caiu com o prédio e para quem agora tem uma casa para viver, esses eventos são marcantes e inesquecíveis. Para o resto, são como se não tivessem ocorrido, porque não fazem parte das suas memórias. Assim como há cinco mil anos, neste mesmo dia, muitas coisas aconteceram, e sobre elas eu (e muito provavelmente você) não sei absolutamente nada.

Há cinco anos, muitas outras coisas também aconteceram. Desde então, passaram-se 1.825 dias. São 43.800 horas. São 2.628.000 minutos. Eu sei disso, porque a calculadora do Google me dá esses dados muito rapidamente. São muitos dias, muitas horas, muitos minutos. O suficiente para ter 58.400 aulas de 45 minutos cada (ou, dependendo do seu caso, apenas uma aula de Direito de Laje, que corresponde a todo esse tempo em um só). O suficiente para que Usain Bolt corresse a prova de 100m 16.459.290 vezes (caso ele não diminua o ritmo, é claro). Enfim, é bastante tempo, mas não são cinco mil anos. E apesar de não serem cinco mil anos, é tempo suficiente para que nós tenhamos esquecido a maioria das coisas que ocorreram há exatos cinco anos.

Ou, mais precisamente, há cinco anos e um dia.

Há cinco anos e um dia, Temer começava seu governo após a presidenta Dilma Rousseff sofrer impeachment em decorrência das pedaladas fiscais. Ele começa esse governo “desconectado” do Brasil, e essa desconexão não desapareceu desde então.

Há cinco anos e um dia, a própria Dilma afirmava que lutaria para voltar. Ela não voltou.

Em São Paulo, a Polícia Militar encheu um ônibus com estudantes secundaristas que protestavam e ocupavam diretoria de ensino, após novos movimentos do Governo do Estado para sucatear ainda mais a educação básica.

Cinco anos (e um dia) passados, esses eventos, como não poderia deixar de ser, já que uma coisa sempre segue a outra, e é assim desde o princípio dos tempos e assim será até o final, deixaram suas marcas no presente. Todo evento deixa. Algumas marcas fenecem pela ausência de testemunhas. Outras se tornam cicatrizes.

A saída da Dilma e a entrada de Temer abriram as portas para 2018, quando Jair Messias Bolsonaro foi eleito. Em 2021, 430 mil pessoas estão mortas (no momento em que escrevo este texto, 14.05.2021) em decorrência direta da omissão proposital do atual presidente da República em relação ao coronavírus.

A Polícia Militar continua violenta, continua opressiva e continua enchendo camburões e ônibus com a juventude (especialmente a pobre e negra). Enche, também, o necrotério. Em 2016 foi em razão dos protestos pela educação. Em 2017, 18, 19, 20, 21 (e nos anos subsequentes, e também em 15, 14, 13 e anteriores), em razão da guerra às drogas ou de qualquer outro instrumento para justificar a violência estatal desmedida.

Há cinco anos e um dia, George Clooney fazia uma previsão equivocada: Donald Trump não vai ser presidente dos Estados Unidos. Bem…

Macaulay Culkin reaparecia. Ibrahimovic deixava o PSG. Etc. Etc.

Muitas outras coisas aconteceram, e sobre quase todas elas eu não sei absolutamente nada. Eu sequer lembrava que foi há exatamente cinco anos e um dia que tudo o que eu citei aconteceu — eu apenas acessei os arquivos dos jornais.

A memória funciona de maneira engraçada. Ela armazena algumas informações de maneira inafastável, e outras ela apenas olha, diz Méh, e passa para o lado, num arquivo grande e empoeirado.

A memória funciona de uma maneira engraçada.

Por isso eu estou falando do que aconteceu há cinco anos (e um dia). Porque eu me lembro desse dia quase todos os dias. Porque nesse dia, uma sexta, eu cheguei em casa à tarde depois de sair da faculdade e liguei para a minha mãe. E nós conversamos sobre possíveis apartamentos em São Paulo para eu alugar, já que eu precisaria me mudar em breve para assumir o cargo em que fui nomeado. Ela estava animada. Eu, não muito, porque sair de Riberão Preto era doloroso. Minha animação era pela animação dela. Ela me disse que falou com uma corretora, da qual gostou muito, e ficou de me enviar um e-mail com o que essa corretora passou. Nos despedimos.

Foi a última vez em que eu falei com a minha mãe. Ela não chegou a enviar o e-mail.

Há cinco anos e um dia eu ainda não sabia que, no dia seguinte, há exatos cinco anos, eu telefonaria para ela de manhã, ela não atenderia, e horas mais tarde ela faleceria no hospital por força de uma falência cardiopulmonar, impulsionada por mais de 40 anos de tabagismo constante.

Hoje faz cinco anos. Em sete dias, eu faço 27. Eu tinha 21.

Há cinco anos e um dia, eu falava pela última vez com a pessoa que mais me compreendeu e também não me compreendeu nesse mundo.

A quase totalidade dos habitantes desse mundo não sabe disso, e assim continuará sem saber.

Eu sei.

Toda a minha vida mudou a partir daquele dia. E a memória dos acontecimentos, inevitavelmente dolorida, confunde-se com a própria memória da minha mãe e com a sua vida, e, uma vez que nesse mundo uma coisa segue a outra, a minha memória nunca deixará de passar pelo que aconteceu há cinco anos. Há cinco anos e um dia, a vida era uma. Há cinco anos, a vida é outra.

Infelizmente, é uma vida com mais saudade.

Felizmente, ainda não acabou. Daqui a cinco anos as memórias ainda estão por fazer, mas uma coisa é certa: eu sentirei saudades da minha mãe e a ela dedicarei outras centenas de milhares de palavras. Essa é a nossa última conversa: uma que não se encerrou.

Life changes fast. Life changes in the instant.

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