A regra dos três dias

Gabriel Schincariol Cavalcante
8 min readAug 3, 2023

Um ensaio sobre adaptação

Publicado originalmente em Eu posso estar errado

Seis de fevereiro de dois mil e doze. Após dois anos estudando, eu me apresentei à EPCAr, em Barbacena, para o início do EAM — estágio de adaptação militar. Com dezessete anos, eu me despedi da minha mãe e me tornei o Estagiário 2012/086 Gabriel Cavalcante. A verdade é que naquele momento eu estava com medo do futuro adiante, a verdade é que naquele momento eu questionei se os últimos dois anos foram bem gastos, quando me dediquei quase que exclusivamente a me preparar para a prova e, depois, para a vida na EPCAr.

O EAM é um grande teatro e você sabe disso desde o primeiro instante. Você sabe que a gritaria é parte de um teatro, você sabe que a pressão é parte de um teatro, você sabe que é tudo performance da violência, mas saber disso não resolve a questão, porque o cansaço, a dor e as dúvidas são todos reais. Os efeitos da perfomance violenta são concretos.

Durante o primeiro dia tivemos algumas palestras e passamos a maior parte do tempo correndo para lá e para cá, saltitando, fazendo flexão, garantindo que nossos corpos encontrassem a exaustão.

Quando anoiteceu, fomos deslocados para um pátio que fica em frente aos alojamentos, chamado de pátio da rodoviária. No pátio da rodoviária entramos em forma e lá ficamos por algumas horas. Por causa da minha altura, eu sempre fui da testa — a primeira fileira da tropa. Na testa, eu encarava a parede dos alojamentos a minha frente. Em posição de descansar — pernas abertas na linha dos ombros, mãos cruzadas atrás das costas, acima da linha da cintura, a mão esquerda fechada sobre o pulso direito — , eu encarava a parede dos alojamentos e sentia meu corpo doer e a minha cabeça alucinar. Nessa posição, eu encontrei um pequeno ponto fixo na parede: um buraco formado pela tinta descascada. Centrei naquele ponto fixo toda a minha atenção. O mundo era, para mim, aquele ponto fixo.

Com os olhos naquele ponto, eu repetia na minha cabeça a regra que eu mesmo havia, muitos anos antes, criado:

Basta aguentar três dias.

Se você já foi a academia algum dia, ou se você consumiu algum tipo de conteúdo fitness, você certamente já se deparou com conselhos genéricos sobre os riscos de manter as costas curvadas durante a execução de alguns exercícios.

Isso é muito perigoso, é o que dizem nesses conselhos.

Levantamento terra, ou Deadlift (Origem: Barbell Medicine)

É uma crença bastante comum a de que devemos manter uma postura reta, ou que uma boa postura é uma postura neutra. Dessa crença surge a conclusão de que durante a execução de exercícios complexos (como o levantamento terra e o agachamento livre) é importante manter a coluna a mais ereta possível. Do contrário, você pode se machucar.

Eu já acreditei nessa história. No entanto, quanto mais forte eu ficava nos treinos e quanto mais anilhas eu adicionava a barra, mais difícil era manter essa postura neutra. Na verdade, era desconfortável manter uma postura neutra na execução de exercícios complexos com altas cargas.

Então, das duas, uma: ou não era possível fazer exercícios com cargas elevadas, ou a premissa estava errada.

Das duas, um pouco de cada.

É preciso, sim, atenção na execução de exercícios complexos com cargas elevadas. A execução com forma adequada exige experiência e cuidado e muita repetição.

A questão é o que entendemos por forma adequada. E forma adequada não é postura neutra, costas retas, coluna ereta.

A coluna humana não é reta. Não é neutra. Não é ereta.

A coluna humana possui uma curvatura natural e o corpo humano é adaptável ao movimento. Nós somos mais resistentes do que tentam vender por aí: nossos corpos são capazes de aguentar pesos elevados e movimentos complexos.

Existem, é claro, limites. E esses limites variam de pessoa para pessoa. Mas não há dúvida de que qualquer pessoa tem condições de evoluir na prática de atividade física, dentro das suas limitações individuais.

O que não existe é a possibilidade de neutralidade absoluta durante a execução dessas práticas, e não há problema em não manter neutralidade na coluna, desde que os limites biomecânicos e de força de cada indivíduo sejam respeitados com evolução gradual mediante sobrecarga progressiva.

Qual o resultado disso?

Corpos mais fortes.

Corpos mais fortes sentem menos dor. E corpos fortes são corpos que aceitam a adaptação.

Eu não me lembro o momento exato em que criei a regra arbitrária dos três dias. Foi em algum momento durante o fim da minha infância e o começo da minha adolescência. Crescendo, meus pais se separaram, mudamos de estado e de cidade, mudei de escola diversas vezes. Em cada um desses eventos eu fui colocado em uma nova situação em que eu precisava começar de novo.

Para alguém que já carrega um sentimento de inadequação poderoso consigo, cada mudança vinha acompanhada de sofrimento. Eu sempre tinha a certeza de que não ia conseguir. Que não ia me adaptar. Que não ia aguentar ficar naquele novo espaço.

De um jeito ou de outro, eu aguentei. Eu me adaptei.

Fiz amigos quando achei que não faria, encontrei saídas quando achei que não encontraria. Senti dores que achei que seriam eternas, mas não eram, o que não diminui a dor em si, mas ensina sobre perspectiva.

Durante algumas dessas mudanças, eu estabeleci um critério simples para me ajudar a seguir em frente:

Preciso aguentar só três dias.

Essa regra é uma espécie de magia autorrealizável. Em três dias, geralmente, eu me sentia um pouco melhor do que antes — não bem, não ajustado, não adaptado inteiramente, mas um pouco melhor. Então eu repetia para mim:

Agora só preciso aguentar mais três dias.

A lógica por trás da regra dos três dias é simples: o impacto inicial é sempre maior do que o impacto contínuo. Sair do frio para um calor extremo, acordar de supetão no meio da madrugada, receber uma enxurrada de luz após muito tempo no escuro. É preciso tempo para se adaptar e superar o choque inicial.

Só mais três dias.

Desde então esse tem sido uma espécie de mantra na minha vida, que eu continuo repetindo, porque continuo me encontrando em situações que põe em dúvida tudo o que eu acreditava até então.

Eu permaneço em contínua redescoberta.

Aguentei mais três dias na EPCAr. E mais três dias. E mais três dias.

E três anos depois, em vinte e sete de janeiro de dois mil e quinze, eu vesti a farda pela última vez, quando me desliguei da Aeronáutica.

A regra dos três dias sempre me ajudou, mas ela não é infalível e nem tem o potencial de superar o despertencimento absoluto.

A cada três dias eu me sentia menos desconfortável, mas eu nunca encontrei conforto na Aeronáutica. Eu poderia sobreviver, sim, mas uma sobrevivência pesarosa. Uma sobrevivência de não ser quem eu sou, de existir pela metade.

Adaptar-se não é se deformar.

Enquanto eu estava na EPCAr, li O encontro marcado, do Fernando Sabino, e um parágrafo ficou impregnado na minha mente como se tivesse sido marcado a ferro nas profundezas da minha consciência:

De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.

Começar. Continuar. Ser interrompido. Fazer da interrupção um caminho novo.

Só mais três dias.

Dentro do bibico (uma cobertura em formato de pastel) é comum que os alunos escrevam seus nomes de guerra, números e anos, para caso a cobertura seja perdida, e também alguma frase. Geralmente essa frase é de vibração, um motivacional constante.

No meu eu escrevi: da queda um passo de dança.

Começar. Continuar. Ser interrompido. Fazer da interrupção um caminho novo.

Fazer da queda um passo de dança.

Eu entendi, finalmente, que recomeçar é mesmo viver. Que é preciso estar disposto a começar outra vez e sustentar esse recomeço, até a próxima interrupção.

Então aguentar mais três dias.

O ato de escrever: você supera o peso da inércia para começar e depois de começar, você sustenta a escrita, até que o fim se anuncie. Até que a escrita se interrompa. Às vezes o texto se completa, às vezes não. Então você faz tudo outra vez.

Por muito tempo eu me neguei a dizer que sou um escritor. Eu preferia dizer: eu escrevo.

Porque eu escrevo significa o ato de escrever, que é o que consubstancia um escritor. Eu escrevo quer dizer que eu começo e que eu continuo e que, interrompido, eu volto a escrever, algo novo, algo vivo, algo meu.

Talvez seja isso um escritor: quem é capaz de sustentar a escrita continuamente, sem sucumbir às inevitáveis interrupções. Sustentar a interrupção como parte da escrita.

Na aula de jiu-jitsu, ouvi do professor: você precisa suportar a pressão para sair da pressão. No jiu-jitsu, você está constantemente sob a pressão do adversário, com as costas no chão e o peso do outro lutador sobre você. Eu, que passei treze anos sem treinar, tentei recorrer a força bruta, empurrar o adversário, levantar, fugir da situação de desconforto. Você precisa suprotar a pressão para sair da pressão. É preciso ter calma. É preciso esperar, respirar, olhar ao redor, encontrar a melhor saída. E então agir.

Quem, como escritor, nunca ouviu alguém dizer: nossa, eu tenho uma ideia ótima, só me falta escrever?

Toda ideia é ótima até ser escrita.

Tudo é possível até acontecer.

O que a pessoa que diz isso não sabe é que só me falta escrever não é só, é tudo. Sem escrever, não existe ideia.

Escrever é insuportável, porque escrever destrói toda a ilusão da ideia perfeita.

Não escrever é insuportável, porque sem escrever a ideia permanece perfeita, opressiva.

Ideia não importa. Escritor é verbo.

Quando digo que sou um escritor, o que quero dizer é: eu escrevo, mesmo que isso signifique ser interrompido antes de terminar.

Depois de me formar na EPCAr e me apresentar na AFA, eu pedi desligamento. Era hora de recomeçar. Fora da Aeronáutica, eu tinha a certeza de onde não queria estar, mas não sabia onde eu queria estar.

Não foi o fim dos meus medos: eles tomaram novas formas. A nova cidade. A nova faculdade. Depois, o luto abrupto.

Life changes fast. Life changes in the instant.

Depois, o novo trabalho e uma nova cidade, outra vez. Depois, uma nova faculdade, outra vez. Depois, o primeiro livro. Depois, o mestrado. Depois, a volta ao jiu-jitsu.

Depois e depois e depois e depois e depois.

Só mais três dias.

Só mais três treinos

Só mais três páginas.

Só mais três linhas.

Só mais três palavras.

Só mais três.

Tive por muito tempo a ilusão de que há adequação absoluta e que o problema era comigo. Abandonei essa ideia por força da experiência: sempre se exige adaptação.

Por sorte, somos feitos de um material maleável. Resistente. Que fica mais forte com o tempo e com a prática.

Não podemos ser quebrados ao meio, porque não somos quebradiços.

Da queda sempre temos o potencial de fazer um passo de dança.

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