A máquina de escrever da Força Aérea Brasileira — Eu posso estar errado — Edição Nº29

Gabriel Schincariol Cavalcante
9 min readApr 20, 2022

Eu queria sair da Aeronáutica, mas acabou a tinta da máquina de escrever.

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Cinco de fevereiro de 2012 eu estava em Barbacena, Minas Gerais, vestindo uma camiseta branca, uma calça jeans, um tênis branco com meias brancas, cinto preto, a camiseta para dentro da calça e na cabeça um boné azul.

Eu era o Estagiário 089/2012 Schincariol, mais tarde Estagiário 086/2012 Gabriel Cavalcante, do Primeiro Esquadrão da Escola Preparatória de Cadetes-do Ar.

Esse foi o meu primeiro dia de três anos como militar da Força Aérea Brasileira. Em 2015, no começo do ano eu era o Estagiário 012/2015 Gabriel Cavalcante do Primeiro Esquadrão da Academia da Força Aérea. Para efeitos práticos e oficiais, eu era o Cadete Aviador 012/2015 Gabriel Cavalcante, mas eu nunca fui, de verdade, um cadete aviador, porque assim que pisamos na Academia da Força Aérea, nós entramos em forma, fomos recebidos pelo Comando do Corpo de Cadetes, ofendidos pelos adaptadores por alguns minutos, subimos para o alojamento, tiramos o 5º uniforme (calça social azul escura, blazer azul escuro, gravata, camisa azul clara, quepe) e colocamos o 10º uniforme (camuflado) para começarmos o período de adaptação. Para eles começarem, não eu. Eu vesti meu 10º uniforme, desci as escadas e falei para o primeiro cadete mais antigo que eu encontrei: senhor, quero pedir desligamento.

Esse cadete mais antigo pareceu chocado, assustado. “Certeza, cara?”, e, sim, eu tinha certeza. Eu já tinha certeza provavelmente desde o meio de 2012, mas eu não queria dar voz para essa certeza. Em 2013 essa certeza aumentou. Em 2014 aumentou ainda mais. Só que eu fui aprovado nos exames médicos (não sei como, porque eu não enxerguei nada no exame de vista), fui aprovado no TAPMIL (um psicotécnico de pilotos), e a semente da dúvida ficou ali na minha cabeça: o que eu vou fazer se eu não for piloto militar? Por isso adiei a decisão, e nas férias entre 2014 e 2015 (o fim da EPCAR, o início da AFA), eu e minha mãe conversamos e eu decidi, definitivamente, que iria sair da Força Aérea. Por isso a primeira coisa que eu fiz, na primeira oportunidade que eu tive, foi pedir desligamento na AFA, antes de qualquer tipo de subjugação física e psicológica. Sobre o que eu fiz depois, apesar de não ser fundamental para essa história, a maioria de vocês já sabe: prestei FUVEST e o concurso do TJ no meu último ano da EPCAR e por algum milagre passei nos dois.

Voltando para a AFA, a partir do momento em que eu pedi desligamento tudo ficou muito fácil. A máscara, vestida com muito gosto, dos adaptadores de bate-mal caiu e eles me tratavam, vejam só, como uma pessoa. Não tinha tensão nem hierarquia. Comíamos na mesma mesa e conversávamos sobre planos para o futuro. Me desejaram boa sorte. Eu estava contente por finalmente me livrar daquele destino que eu mesmo tinha escolhido para mim, mas que, desde o princípio, não havia me servido bem.

As relações ficaram mais fáceis, mas a burocracia não. Para sair da Aeronáutica você precisa fazer uma coisa chamada DESIMPEDIMENTO DE FICHA, que é, em resumo, conseguir todas as assinaturas necessárias confirmando que você não possui nenhuma pendência em nenhum setor. Um cadete da equipe de adaptação me acompanhava pela Academia, de setor em setor, buscando essas assinaturas. Entreguei minhas fardas, assinatura do oficial do setor. Entreguei minha funcional, assinatura do oficial do setor. Tirei foto 3x4, fiz exame médico, mais assinaturas. Algumas coisas eram non sense: tive que pegar assinatura do setor de voo confirmando que eu devolvi todo o equipamento, mas eu não tinha nenhum, porque eu tinha, literalmente, acabado de chegar. Não importava. Precisava da assinatura do oficial. Fui pegar a assinatura do chefe da seção de instrução militar, que daria uma palestra motivacional para o meu esquadrão — aqueles que permaneciam na adaptação. Me apresentei, disse que precisava da assinatura, e a resposta foi:

“Assino depois da palestra, quem sabe você não muda de ideia.”

Não mudei, é claro, mas perdi duas horas que poderiam ser revertidas em três, até quatro outras assinaturas.

No terceiro ou quarto dia (eu ficava dormindo em um quarto separado, com outros AGDS — aguardando desligamento), quase tudo parecia estar resolvido. Faltava apenas a seção mobilizadora, que é a responsável por emitir a reservista. Geralmente a emissão da reservista leva alguns dias, então é comum o AGD ir embora e só retirar mais tarde.

É comum, eu disse, mas às vezes a burocracia do militar supera o bom senso.

Cheguei na mobilizadora. Entreguei minha ficha com meus dados completos. O soldado recebeu, assinou, e foi para a parte interna da seção. Voltou uns minutos depois, com cara de confuso.

“Então, senhor.”

Então?

“Então, a tinta da máquina de escrever acabou”.

Ok?

“E a reservista tem que ser feita nela, no padrão das outras”.

Ok?

“E a fábrica que fornece a tinta pra gente faliu, então tá sem previsão, talvez leve uns três meses pra ficar pronta.”

O absurdo era bastante evidente, só que eu já estava acostumado, a essa altura, com o ritmo das forças armadas para resolver problemas simples. Não quis prolongar o assunto e disse apenas que, quando tivesse pronto, eles poderiam me avisar e eu iria retirar. Ele concordou. Pegou meu número e e-mail e eu segui para o comando, informar o adjunto do comandante do meu esquadrão, um capitão de infantaria, que eu já estava pronto para ir embora.

Ele tinha outros planos.

“E a reservista?”

Não tá pronta, tá sem tinta, vai levar uns meses.

“Mas aí não pode.”

Capitão.

“Não pode, sem a reservista você vai provar como que você saiu mesmo? Pode ter fugido, desertado.”

Capitão.

“Tem que aguardar aqui.”

Capitão, são três meses, eu não posso ficar aqui três meses só esperando a tinta da máquina de escrever.

“Não pode sair sem, não tem como.”

Capitão.

“Vou levar pro major — o major era o comandante do esquadrão e, também, o meu colog [colog, no jargão militar, é aquele militar que possui o mesmo número do outro dentro de uma certa escola/instituição; o major, no caso, foi o cadete aviador 012 em algum ano do passado] -, mas você vai ter que aguardar.”

Eu poderia ter chorado, surtado, virado um mortal pra trás de raiva. Mas eu apenas me levantei e fui para o quarto esperar o dia seguinte.

Às oito e alguma coisa da manhã, uma cadete me chamou e disse que o major queria falar comigo. Fui até o comando, ele me cumprimentou, ressaltou outra vez que éramos colog e que era uma pena eu me desligar, mas cada um sabe o que é melhor pra si, e disse que estava tudo certo e eu podia ir embora. Eu sequer perguntei da reservista, me despedi de todos e voltei para o quarto esperar alguém vir me buscar.

Corta para algum tempo depois.

A reservista do Gabriel Cavalcante, 2 metros de altura, sangue AB+, filho de Mara Cristina

Quando minha reservista finalmente ficou pronta eu já estava em Ribeirão, na USP. Não era tão longe assim de Pirassununga, mas a logística para ir buscar o documento seria complicada. Decidi esperar até o espadim da minha turma, uma celebração em que os cadetes do primeiro ano recebem o espadim — daí o nome -, o símbolo do cadete. Como eu iria para a AFA assistir a cerimônia (eu ainda mantinha um mínimo de relação cordial com a maioria do esquadrão), pedi para um amigo pegar minha reservista na mobilizadora e entregar para alguém da minha turma.

Tudo deu certo e eu recebi minha reservista em mãos.

Cheia de erros.

Me deram 11 centímetros a mais de altura, mudaram meu tipo sanguíneo para AB+ (é O+), e minha mãe foi de Maria Cristina para Mara Cristina.

O que eu fiz?

Nada. Decidi que ia manter assim até que fosse obrigado, por alguma circunstância, corrigir.

Corta para 2021.

O habeas data

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LXXII — conceder-se-á habeas data:

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;

b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;”

Eis o que diz a Constituição Federal de 1988.

O ano em que eu precisei corrigir minha reservista foi o ano de 2021. Durante cinco anos o militar da reserva precisa pegar, anualmente, uma assinatura na seção mobilizadora mais próxima da sua residência. Basicamente serve para dizer que você está lá, e está vivo. Claro que eu esqueci e peguei três ou quatro, todas atrasadas. Precisando renovar meu passaporte, seria necessário regularizar a assinatura faltante. Em tese todo reservista pode acessar o status da sua mobilização online. Foi o que eu tentei fazer.

E segundo o portal do governo, eu ainda era um militar da ativa. Sem nenhuma assinatura. E sem dar baixa no meu tempo de serviço.

Aparentemente não era só a tinta que estava em falta na SMOB da AFA, mas também os neurônios.

Tentei ligar na SMOB de São Paulo e ninguém atendia. Mandei e-mail e falaram que era direto com a Aeronáutica. Mandei e-mail para a SMOB da AFA e eles me pediram uma cópia da reservista e os dados corretos, que eles retificariam e eu só precisaria retirar uma versão nova em qualquer SMOB mais próxima de mim.

Enviei.

Um mês.

Dois meses.

Três meses.

Ninguém me respondia. Ligava, ninguém atendia. No site do governo eu continuava em situação irregular.

Foi então que eu precisei acionar meu amigo pessoal e também advogado nas horas vagas, Lucas “Yao” Takao Kobayashi. Munido das informações necessárias, e preenchendo os requisitos do art. 5º, inc. LXXII, da CRFB/1988, interpelamos judicialmente a União e a Força Aérea Brasileira, por meio de habeas data, solicitando a retificação do meu documento pessoal.

Um dia depois da citação do comandante da AFA, meu e-mail foi respondido informando que a nova reservista estava pronta e era só retirar no Campo de Marte, em São Paulo, levando uma foto 3x4 atualizada.

Vitória?

Quase.

“A culpa é sua!”

Se tem uma coisa em que os militares são ótimos, essa coisa é delegar a culpa para terceiros.

Saí da minha casa de tarde e fui até o Campo de Marte, após confirmar, por telefone, até que horas a seção funcionava. Cheguei lá, fui recebido na guarda, meus dados foram cadastrados, e um soldado me acompanhou até a SMOB da base.

Expliquei para outro soldado a situação, entreguei meus documentos e minha reservista antiga, e ele sentou num computador. A nova reservista estava pronta, os dados antigos realmente estavam errados, e ele achou graça em como conseguiram, na SMOB da AFA, errar tanta informação básica. Eu também achei.

Foi quando o Sargento Gabriel, sentado ao fundo, ouviu as risadas e interveio. Ele não parecia feliz com a felicidade alheia.

O soldado explicou para ele o que tinha acontecido. Ele não se convenceu.

“A culpa é sua”, ele disse olhando para mim.

Quê?

“Você não viu que estava errado quando recebeu?”

Vi, mas quem recebeu por mim foi um cadete, porque eu estava em outra cidade, e no dia em que peguei a SMOB já estava fechada.

“Mas ele não podia receber por você, ele não tinha procuração.”

Nesse momento, eu, já bacharel em direito, poderia ter recorrido ao fenômeno que advogados no geral adoram: a carteirada. Mas eu não recorri. Eu apenas concordei com a cabeça e disse: bom, meus dados estavam errados, porque a SMOB da AFA fez errado, e agora arrumaram.

“É, mas tem que pagar a taxa.”

Mas quem preencheu errado foram eles, sargento, o soldado disse, e logo se arrependeu, porque a resposta do meu xará foi:

“Que se foda, porra, tinha que ter visto na hora.”

Paguei a taxa de dez reais no banco, voltei com o comprovante, o oficial, que não tinha aberto a boca até aquele momento e estava ocupado reclamando da comida do rancho, assinou digitalmente minha nova reservista, carimbou todas as apresentações anuais de uma só vez e, finalmente, eu estava quite com o serviço militar do meu país.

Seis anos depois, a saga da tinta da máquina de escrever havia chegado ao fim. Nos autos do habeas data, a Força Aérea Brasileira pediu a rejeição da ordem, porque, segundo ela, o problema já havia sido resolvido administrativamente.

É verdade, mas também não é. Só que com militar é melhor você não estender muito a discussão.

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